“Recrutar alguém para o serviço secreto é difícil. Você precisa de alguém um pouco mau, mas, ao mesmo tempo, leal... E eu me encaixava perfeitamente.” Essa frase é apenas um dos muitos exemplos de sinceridade e confiança dados por David Cornwell em suas entrevistas exibidas no documentário O Túnel dos Pombos, recém-lançado na Apple TV+. Caso esse nome não seja o suficiente para saber quem é o homem que fala com tanta propriedade sobre a espionagem, talvez seu pseudônimo traga um pouco de luz: ele era conhecido mundialmente como John le Carré, autor de best-sellers como O Espião que Saiu do Frio, O Espião que Sabia Demais e Um Espião Perfeito, todos transformados em longas-metragens.
Antes de morrer, em dezembro de 2020, o escritor conversou por quase 14 horas com o documentarista Errol Morris, que ganhou um Oscar em 2003 após um trabalho sobre Robert McNamara, ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos. Esse papo sem precedentes (considerando que le Carré não era muito de dar entrevistas) foi pautado a partir do material divulgado pelo próprio em sua primeira autobiografia, lançada com o mesmo título do novo documentário, em 2016. Sem muito enrolar, o longa já explica nos primeiros dez minutos o que é o tal do túnel dos pombos: uma metáfora ligada ao esporte tipicamente britânico de tiro ao pombo, que vez ou outra foi considerada pelo escritor como um possível título para vários de seus livros, inclusive os citados no parágrafo anterior.
Mas a graça não está no título e, sim, na própria figura de le Carré. Sua maneira de se portar e contar bem até as histórias traumáticas da infância, com um pai estelionatário e uma mãe ausente, fazem o espectador sentir que está lendo algum texto muito bem polido do autor de espionagem. Sua franqueza, seja ela real ou não, é um aspecto responsável por prender quem assiste ao material.
Nos minutos iniciais, ele questiona Morris (que se coloca como personagem da própria produção) sobre suas intenções com a entrevista, para entender se serão amigos ou inimigos. John le Carré demonstra entender bem a natureza e as dinâmicas de um interrogatório, afinal, antes da carreira ilustre escrevendo livros, ele foi agente do serviço secreto, trabalhando tanto no MI5 quanto no MI6 ao longo dos anos de 1950 e 1960.
Moralmente ambíguo
Muitos dos posicionamentos e pensamentos de le Carré, que pode ser traduzido do francês como “o quadrado”, são escancarados no documentário. Ele repete que os espiões são figuras moralmente ambíguas em diferentes momentos do longa, indicando que a “traição” é uma das questões mais importantes da vida. O escritor defende isso firmemente, pois teve de abandonar a espionagem quando Kim Philby, um chefão do MI6, desertou para a Rússia e revelou o nome real de diversos agentes secretos do Reino Unido, incluindo o de David Cornwell – ele assinava suas obras com o pseudônimo de John le Carré, em um primeiro momento, justamente para manter sua identidade e sua segurança em segredo.
O Túnel dos Pombos se debruça nesse acontecimento basilar de sua vida, revelando como também serviu de combustível para a confecção de O Espião que Sabia Demais. Mesmo se não estiver familiarizado com o texto original, publicado em 1974, o espectador achará o relato dele irresistível e mais realista sobre o mundo da espionagem do que qualquer texto de Ian Fleming, o criador de James Bond, o agente 007.
Mais um trunfo do documentário é sua maneira de explorar as dualidades entre o Ocidente e o Oriente durante a Guerra Fria. Cornwell esteve infiltrado na Alemanha Ocidental como um diplomata e acompanhou a criação do Muro de Berlim, descrito por ele como o “símbolo mais imoral da insanidade da luta humana”. Ele não apoiava nenhum dos lados e indicava crer que a polarização extrema da sociedade travava seu avanço.
Para fãs de história, política ou somente causos de agentes secretos, O Túnel dos Pombos é um dos melhores documentários na praça. Além de trazer as ótimas entrevistas com le Carré, a produção agrega boas dramatizações e cenas de clássicos filmes da espionagem, como O Espião que Saiu do Frio. Tudo isso com uma trilha sonora assinada por Philip Glass e Paul Leonard-Morgan, que dá o tom de suspense característico do universo dos serviços secretos.