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opinião

Oscar: uma pequena história da irrelevância

Preparativos para o 91º Oscar na Hollywood Boulevard, em 21 de fevereiro de 2019. | ROBYN BECK/AFP
Preparativos para o 91º Oscar na Hollywood Boulevard, em 21 de fevereiro de 2019. (Foto: ROBYN BECK/AFP)

A maioria das pessoas que compra toneladas de pipoca para se sentar diante da televisão no domingo à noite e acompanhar a cerimônia do Oscar talvez não saiba, mas durante boa parte da sua história, o Oscar foi tratado pelo público e pelo próprio mundo do cinema como um evento completamente irrelevante, quando não vulgar e repulsivo. 

Nos anos 1960 e 1970 (e antes disso, logicamente), ninguém se dava ao trabalho de acompanhar as intrigas e celeumas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Até porque o cinema, isto é, o ato de ir ao cinema, comprar pipoca, se sentar no auditório lotado, acender um cigarro, flertar com o brotinho, rir e chorar e fumar outro cigarro antes de voltar para casa era essencialmente entretenimento e não se pretendia (ao menos não explicitamente) a nada além disso. E atores, diretores e técnicos pertenciam a uma Hollywood mítica, não necessariamente admirável, cuja rotina as pessoas acompanhavam com uma mistura de inveja, nojo e escândalo. 

Os grandes clássicos da Era do Ouro do cinema foram feitos à revelia do Oscar – e talvez por isso mesmo hoje em dia os reconheçamos como clássicos absolutos. Digo, o prêmio existia com toda a pompa do mundo, com as limusines e os vestidões e toda aquela cafonice dourada dos novos-ricos de Hollywood, com aplauso dos coleguinhas e discursos agradecendo a mamãe e o papai. Mas ganhar ou perder o Oscar não significava nada. Nem para o público, nem para os atores, diretores e técnicos. E muito menos para os intelectuais que aqui e ali refletiam sobre o que assistiam na tela grande. 

O Oscar era tão vulgar quanto aquelas fotonovelas nas últimas páginas da Contigo! E não havia nada de mau nisso. 

Nos anos 1970 e 1980, a irrelevância do Oscar era óbvia e, de certo modo, até insultante. E note que não me refiro a premiações polêmicas ou a supostas injustiças. Até porque não havia nada disso. O grande clássico ‘Star Wars’ (que na época se chamava Guerra nas Estrelas mesmo) nunca ganhou um Oscar de Melhor Filme e nem por isso deixou de se tornar o clássico inegável que é hoje. E o mesmo serve para ‘E.T.’ (ganhou quatro prêmios técnicos, eu sei) e os inesquecíveis filmes de John Hughes.

Falo, aqui, da não-importância mesmo, daquela coisa para a qual todo mundo dá de ombros, aconteça o que acontecer. Marlon Brando recusou o Oscar por sua atuação em ‘O Poderoso Chefão’, mandou uma índia (nativa norte-americana, se você preferir) receber a estatueta e, no dia seguinte, as pessoas voltaram a se preocupar com suas vidas em meio à crise do petróleo e o medo de uma guerra nuclear. 

Mudança

Uma década mais tarde, porém, isso começou a mudar e o Oscar, aos poucos, começou a ser visto, primeiramente pelos analistas culturais e só depois pelos estúdios e o público, como algo digno de nota. A premiação, antes tão-somente uma espécie de “festa da firma”, passou a se ver como premiação mesmo, isto é, como reconhecimento de um mérito estético. E atores, diretores e técnicos, até então meio alheios àquele Carnaval mui peculiar, passaram a cobiçar o Oscar como uma forma de ter seu dom artístico reconhecido. 

Foi nessa época que começaram a surgir as grandes controvérsias do Oscar. ‘Pulp Fiction’ perdeu para ‘Forrest Gump’? Que absurdo! ‘Titanic’ ganhou mais Oscars do que ‘A Lista de Schindler’? Não pode ser! Helen Hunt como Melhor Atriz? ‘Shakespeare Apaixonado’? Ah, desisto. 

Há que se notar que o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 marcam a decadência do cinema-cinemão. Desde os anos 1980, mais ou menos, a rotina de sair de casa, comprar pipoca, se sentar no cinema com aquelas poltronas de veludo, fumar um cigarro, flertar com a menina da poltrona ao lado, fumar outro cigarro, etc. já não era uma realidade. Primeiro as fitas VHS e depois os acessíveis DVDs, sem falar na TV a cabo, transformaram a experiência cinematográfica. Era preciso, pois, inventar um motivo outro que não o filme em si, um metaentretenimento, por assim dizer, capaz de fazer com que as pessoas voltassem a frequentar as salas de cinema. E foi assim que o Oscar ganhou a relevanciazinha à qual tenta se apegar desesperadamente hoje em dia. 

O público passou a assistir aos filmes, sobretudo àqueles lançados no começo do ano, de olho no Oscar. E o verbo “merecer” passou a acompanhar a estatueta dourada que retrata o tio da secretária, como reza a lenda. Beleza Americana merece o Oscar! Aquele filme nepalês com aquela fotografia linda (as pessoas geralmente confundem fotografia e paisagem, mas paciência) merece o Oscar! Aquela atriz, aquela e não a outra, e aquele ator, aquele e não o outro, merecem o Oscar. Aquele diretor é tão bom que merece dois, três, cinco Oscars! 

Nessa época, a cerimônia do Oscar passou a ser “o” evento. A Academia investiu pesado na produção. A imprensa acompanhava o Oscar como se, naquele dia, nada houvesse de mais importante no mundo. O que Fulana estava vestindo era assunto para uma semana de discussão. O que o apresentador disse ou deixou de dizer, as gafes, os discursos. Embora a imagem tenha se tornado um lugar-comum, ela é bastante válida: a cerimônia do Oscar era como uma festinha no Olimpo, com deusas siliconadas pairando sobre mortais boquiabertos com tamanha exuberância. 

Pouca arte, muita política

Até que o século virou e o Oscar sucumbiu ao peso da própria sensação de autoimportância. Em meados dos anos 2000, o Oscar passou a ser visto não mais como algo capaz de reconhecer o mérito artístico dos envolvidos, e sim como uma forma de promover um sem-número de plataformas políticas.

E o cinema, que um dia foi entretenimento a alcançar o patamar de arte, agora se via (se vê) como arte a almejar o patamar de “agente transformador”. Atores, diretores e técnicos não são mais simples peças na engrenagem dos sonhos, e sim intelectuais (sim, até o cara que segura o microfone!) determinados a realizar uma utopia, sem jamais atentarem para a contradição disso. 

O resultado foi, primeiro, a irrelevância estética, cultural e artística. Repare: à medida que Hollywood passou a fazer filmes que “transmitem uma mensagem” com o objetivo de ganhar o Oscar, esses filmes não só deixaram de ser entretenimento (e, às vezes, arte) como também perderam a força e o alcance do discurso.

Que cena clássica, absolutamente clássica, inegavelmente clássica, daquelas que a gente reconhece só de ver um frame, filmes como ‘Guerra ao Terror’, ‘Argo’ e ‘Spotlight: Segredos Revelados’ legaram à história do cinema? Que transformação cultural eles causaram no público? Que emoções despertaram? Qual o mérito deles, enquanto produto artístico, além de receber meia-dúzia de estatuazinhas banhadas a ouro? 

O Oscar virou palanque de todas as causas imagináveis. Já há alguns anos atores, diretores e técnicos se destacam, nas cerimônias do Oscar, não como profissionais dignos de méritos em suas áreas, e sim como membros de um grupo minoritário qualquer (negros, homossexuais, imigrantes, mulheres) que, apesar de tudo, venceram na vida (isto é, ganharam o Oscar) e que agora podem, ou melhor, devem destilar ressentimento para milhões de pessoas que insistem em estourar baldes de pipoca e atravessar a noite diante do televisor para ouvir as piadas politicamente corretas de um apresentador(a)(x) também ele(a)(x) necessariamente vítima de uma opressão qualquer. 

E, a julgar pela lista de indicados, o Oscar 2019 não será diferente. Não importa quem ganhe nas duzentas categorias, uma coisa é certa: a premiação do Oscar perdeu mais uma vez a pouca relevância que um dia chegou a ter e está destinado a, em breve, voltar a ser tão-somente um festerê para endinheirados autocentrados, alheios ao mundo real e empenhados em alienar ainda mais uma plateia que boceja para seus draminhas sócio-políticos. 

Já não mais uma fotonovela estrelando Liz Taylor e Richard Burton, agora o Oscar é entretenimento igualmente vulgar para leitores de Foucault e Slavoj Žižek.

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