Em entrevista, o celebrado tradutor e poeta Paulo Henriques Britto fala de sua relação com a literatura, o papel da poesia e seu trabalho como tradutor.| Foto: Divulgação

Paulo Henriques Britto é um dos nomes mais importantes da poesia brasileira contemporânea. Estreou na literatura no início dos anos de 1980, com o Liturgia da matéria, que evoca as primeiras sutilezas rítmicas do poeta, além de os interesses temáticos e estéticos que se destacariam com mais ênfase nos livros posteriores.

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Entre idas e vindas do Brasil aos Estados Unidos, na infância e juventude, retornou ao Rio de Janeiro, ainda nos anos 1970, passando a lecionar em um curso de idiomas e, depois, na Pontifícia Universidade Católica, onde ministra há quatro décadas disciplinas voltadas às áreas de Tradução Literária e Literatura de Língua Inglesa.

Como tradutor, verteu mais de cem textos ao português, incluindo produções literárias de Lord Byron, Emily Dickinson, Charles Dickens, Allen Ginsberg, Wallace Stevens, Elizabeth Bishop, William Faulkner, James Baldwin, Philip Roth e Thomas Pynchon. Autor de livros como Trovar claro, Macau, Formas do nada, Mistério nenhum, entre outros, Britto notabiliza-se pelo poder de síntese e o trabalho geométrico com as palavras, tratando quase sempre de aspectos de natureza metalinguística e existencial.

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Em entrevista realizada em seu apartamento, o poeta fala sobre os anos de formação, o fascínio pela prosa, o encontro com a poesia, o processo criativo e as especificidades da tradução literária.

De que maneira a escrita como expressão artística começa a fazer parte da sua vida?

Aprendi a ler muito cedo. Eu era uma criança doente, tinha asma, não saía muito de casa. Acabei aprendendo a ler sozinho, me virando por meio da televisão e das revistas em quadrinhos. Sempre tive muita vontade de escrever, devido ao meu interesse por literatura desde muito cedo. Minha outra grande paixão, talvez a maior paixão da minha vida, é a música, para a qual não tenho nenhum talento, embora tenha tentado estudar por uns tempos. Até hoje, estudo piano de vez em quando, mas o meu barato realmente sempre foi a palavra. Meu maior interesse sempre foi pela ficção, na verdade. Queria escrever ficção, escrever romances. Em uma época da minha vida, estudei Cinema. Morei na Califórnia, durante um ano e meio, estudei Cinema por lá e escrevi muitos contos. Uns trinta ou quarenta contos, dos quais sobraram meia dúzia que já publiquei. Comecei também a traduzir poesia. Já tinha escrito alguns poemas antes, mas sem muita seriedade. Meu projeto mesmo era me tornar ficcionista, mas nunca tive muita facilidade de escrever ficção. Então, acabei me bandeando para a poesia. Quando voltei ao Brasil, comecei a trabalhar como professor de Tradução Literária na PUC, coisa que faço até hoje. Tenho mais de 120 livros traduzidos e publicados. Mas ao trabalhar dando aulas de Inglês e de Literatura de Língua Inglesa, fui cada vez mais me interessando pela poesia. Quando vi, realmente estava escrevendo, mais ou menos, a sério. Meus amigos ficavam em cima de mim, perguntando quando iria publicar. Dizia para eles que, antes dos trinta anos, não iria publicar nada, para depois não ficar igual ao Ferreira Gullar, com vergonha do primeiro livro dele, essas coisas. Então, fui publicar mesmo com trinta e um ou trinta e dois anos de idade. As pessoas me perguntavam por que eu não publicava em revistas, mas naquela época não tinha, na verdade. O meu primeiro livro é de 1982, numa época em que o conto estava vivendo um boom no Brasil. Não tinha revista de poesia. Havia tido o movimento da poesia marginal, que naquele momento estava acabando, ou seja, começou a se socializar, a sair pela Brasiliense. Mas realmente não havia revistas de poesia. Hoje em dia, você tem um monte de revistas online ou no papel. Então, acabou que o meu livro saiu mesmo só em 1982. Reuni tudo o que havia escrito até então. Deu um livro fininho, o Liturgia da matéria.

Como a poesia tornou-se o gênero que o senhor passaria a trabalhar com mais ênfase e obstinação no campo literário?

Eu, no Brasil, quando menino, lia muita ficção e pouca poesia.O contato que eu tinha com a poesia era muito frustrante. Me davam poesia infantil. A poesia infantil, pelo menos no meu tempo, era a melhor maneira de fazer com que uma pessoa pegasse horror à poesia. Achava aquilo muito ruim. Quando tinha dez anos de idade, fui para os Estados Unidos. Isso foi antes de estudar Cinema. Meu pai era militar, foi transferido para o exterior e a família acabou indo junto. Fiquei morando dois anos e meio por lá. Me colocaram na escola, nessa época eu já estava falando inglês... No meu segundo ano, na disciplina de linguagens, a professora só dava literatura. Não falava em gramática. Botava a gente para ler Shakespeare, Emily Dickinson, Edgar Allan Poe e Walt Whitman. Então, imagine, para um menino que só tinha lido poemas patrióticos de Olavo Bilac e poesias infantis de Júlia Lopes de Almeida, essas coisas, o choque que foi ao ler Shakespeare e Whitman. Foi uma descoberta. Aí sim comecei a gostar de poesia. Quando cheguei ao Brasil, um ano depois, pensei: deve ter alguma coisa boa em língua portuguesa, não apenas aquelas porcarias que eu lia. Minhas duas primeiras grandes descobertas foram o Fernando Pessoa e o Manuel Bandeira. Foi a partir desses dois poetas que comecei a ler poesia a sério em língua portuguesa. Isso aconteceu quando eu estava por volta dos quinze anos de idade.

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Ao reler seus livros, percebo vários traços em comum entre eles. Muitas vezes, o material textual de seus poemas lembra-me muito do estilo de Beckett. Pode abordar esse aspecto da sua poética voltada à metalinguagem, ao mínimo, ao pequeno, ao trivial e também à busca do próprio ser enquanto existência?

Beckett foi um autor que li muito no período de minha formação. Por volta de 1972 e 1973, quando eu morava na Califórnia, no tempo em que estudava Cinema, comecei a ler Beckett. Antes havia lido apenas seu teatro. Teve uma fase que queria fazer e estudar teatro, antes da minha ida para os Estados Unidos. Ainda não tinha lido a prosa de Beckett. E foi na Califórnia que a descobri. A prosa dele teve em mim um efeito muito grande. Muito grande. Li muito Joyce também, mas o autor que mais me impactou foi Kafka. E é o autor que mais releio até hoje. Releio Kafka mais do que qualquer outro poeta. Existe nele algo de autorreflexivo — a prosa sobre a própria prosa, a escrita sobre a própria escrita. Isso me interessa. Agora, há uma tendência muito forte à metalinguagem na poesia. As pessoas dizem que metapoesia ou a metalinguagem são uma coisa moderna. São e não são. Há sonetos de Shakespeare falando sobre a questão do soneto. Mas desconfio que os poetas que li mais me impactaram sobre esse aspecto. Eu li muito, para além dos que já mencionei, Wallace Stevens, que é um poeta que traduzi; Emily Dickinson e muito Walt Whitman, além de Eliot e outros mais recentes. Um tema que você vai encontrar na poesia do século 20, que é a que mais li, é a questão da própria linguagem poética, a dificuldade da poesia. Então, é uma coisa que estava no ar, durante o tempo em que me formei. O que é um pouco diferente, talvez, da poesia contemporânea. Dou um curso todo ano de poesia contemporânea na PUC. Acompanho muito a produção dos mais jovens. E eles têm uma tematização muito do eu, da viagem, da questão de estar em trânsito. Os poemas são muito montados em cima de citações, que é uma coisa que já vai bater no Eliot, e que nunca trabalhei muito. Sinto que pertenço a um mundo diferente. A minha geração é a marginal. Tenho a mesma idade do Chacal, nascemos no mesmo mês praticamente. E vejo uma continuidade entre a poesia da geração marginal e a dos jovens de agora. Uns temas em comum. Mas nunca tive muita identidade com isso. Estou um pouco mais ligado à geração anterior. Talvez com os modernistas e um pouco depois do Modernismo. Esses foram os poetas que realmente fizeram a minha cabeça.

Paraíso artificiais é uma seleção de contos escritos ainda no período em que o senhor estudava cinema, nos Estados Unidos. Como foi a experiência de retornar a esses textos décadas depois e, finalmente, publicá-los?

Fui para a Califórnia estudar cinema, em 1972, numa época barra pesada no Brasil, durante a ditadura. Eu já sabia inglês, então fui com aquela intenção de, talvez, ficar por lá. Queria fazer Cinema e escrever prosa. Mais escrever prosa do que cinema, que era mais um pretexto para ir embora do Brasil. Passei um ano e meio escrevendo freneticamente prosa. Escrevi uns trinta contos ou mais. Mas desisti de ficar lá, desisti de fazer Cinema e voltei ao Brasil, onde comecei a dar aulas de inglês e, depois, virei professor da PUC. Nesse ínterim, quanto mais eu relia aqueles contos, mais achava que eles estavam muito ruins. Fui abandonando quase todos. Mas fiquei trabalhando uns cinco ou seis durante os próximos trinta anos. Aprontei, mais ou menos, um livrinho e ofereci à Nova Fronteira, mas ela não se interessou porque era muito fino. Continuei trabalhando os contos. Depois, publiquei o Macau, um livro de poesia que ganhou o Portugal Telecom, atual prêmio Oceanos. Na época, era o maior prêmio literário no Brasil. A Companhia das Letras acabou sabendo que eu tinha um livro de contos e, de repente, ficou interessada por ele. Mandei o livro, e de novo veio aquela história: o livro está muito fino, não dá para você fazer mais nada? E pela primeira vez na minha vida, e última, aconteceu isso — sentei e resolvi escrever uma novelinha. Pensei: “vou escrever um conto longo”, que fecha o livro. E aí eles acharam que o tamanho do livro estava bom. Tinha de sair um pouco rápido, para pegar o auê em torno do prêmio. O livro foi publicado um ano depois do Macau. Meio que achei que nunca mais escreveria contos, mas, de lá pra cá, venho trabalhando em alguns. Agora acho que já tenho um material que dá para fazer um segundo livro de contos. Tem dois contos que ainda são de coisas que sobraram da Califórnia, os outros são todos novos. Deve sair um livro com uns oito ou dez contos.

Quando penso em Paraísos artificiais, de forma automática, penso em Charles Baudelaire, devido à correspondência do título ligado em ambas as obras. Houve algum tipo de exercício intertextual com o poeta francês ou trata-se de mera coincidência?

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Tive uma fase com a obra do Baudelaire. Li, inclusive, a prosa dele. Não há uma ligação muito grande entre o Baudelaire do Paraísos artificiais com o meu livro de contos, mas gostei daquele nome. Achei que tinha a ver com o primeiro texto do livro. Sou ruim em colocar nome em livro ou poema, então acabou ficando assim. O título do meu antepenúltimo livro de poesia, Tarde, roubei descaradamente do Olavo Bilac. Tenho uma certa dificuldade. O motivo de Paraíso artificiais foi porque achei que boa parte dos contos girava em torno de personagens que, de certo modo, têm uma dificuldade de acreditar na realidade e criam certas realidades paralelas. São dois ou três contos, pelo menos, que trabalham com esse tema.

Como funciona o seu processo criativo para a poesia? Existe uma rotina diária específica?

Não tenho um processo definido ou lógico para fazer poesia. É uma coisa muito irregular. Eu tinha uns cadernos nos quais ia escrevendo… Sempre que tinha uma ideia, anotava. Alguns poemas partiam, muitas vezes, de trechos de poemas abandonados anteriormente. Essa era a minha fonte principal, e talvez ainda seja. Coisas que eu estava lendo, ideias que tinha. Às vezes, partiam de uma solução rítmica, de uma rima interessante, construir um poema em cima dessa rima. Às vezes, em cima do esquema métrico, e ali eu descobria uma fórmula nova. Por exemplo, estava lendo o Mais provençais, do Augusto de Campos, e fiquei fascinado pela sextina. Eu já havia lido uma ou outra sextina, mas ali o Augusto analisa várias sextinas do Arnaut Daniel. Então, eu escrevi uma sextina. Tem um pouco esse esquema. Com o tempo, fui realizando esse trabalho de, volta e meia, pegar os cadernos, reler e pegar uma coisa daqui e outra dali. E é uma coisa muito desproporcional. No ano de 2010, por algum motivo, tive meio caderno de trezentas páginas, então foi um ano que produzi muito. Há, às vezes, cadernos do mesmo tamanho que têm trabalhos de três ou quatro anos de diferença. Não há uma certa lógica. Tenho um ritmo que varia muito. Quando acabo de organizar um livro, produzo muito. Quando o livro sai, passo por um período que não escrevo nada. Estou voltando só agora a tentar escrever coisas novas, desde que o meu último livro [Nenhum mistério] saiu em agosto de 2018. Nos primeiros meses, realmente, não fiz nada. Concentro nos meus cadernos antigos, tentando tirar alguma coisa de lá. Pego um verso que sobrou aqui e ali, tentando fazer alguma coisa em cima daquilo. Eu levo seis ou sete anos para fechar um livro.

Sinto que, nas últimas décadas, o papel do intelectual, sobretudo do poeta, no Brasil, tem perdido cada vez mais valor. Qual é a sua visão sobre essa ausência de potência relacionada à figura do poeta brasileiro?

Acho que, em cada época, você tem uma arte, ou mais de uma arte, que ocupa certa posição central, mas isso nunca dura muito tempo, historicamente. Quando Byron, que é um poeta que trabalhei e traduzi, publicou um de seus livros, no início do século 19, a primeira edição, de 10 mil exemplares, esgotou em menos de vinte e quatro horas. Com a população da época, na Inglaterra, como pode? Pois é. Para você ver como a poesia naquela época ocupava uma posição central. No século 19, a poesia e o romance ocuparam uma posição central, mas eu diria que a poesia era a arte. Na música, você tinha a ópera, que era um momento de glória. A ópera era uma música popular. Aqui, no Brasil, havia duas ou três cantoras populares. Cada uma tinha uma torcida, e as pessoas saíam na porrada, disputando quem era a melhor cantora. Depois, as coisas foram mudando. Eu diria que o Modernismo foi o último momento em que a poesia realmente teve uma pulsão central. Isso vai, mais ou menos, até a metade do século. A poesia concreta foi ainda um movimento centrado na poesia, que teve imbricações nas artes plásticas e tudo. Acho que um momento crucial para entendermos uma passagem foi a Tropicália. Foi o último movimento de vanguarda. De certo modo, as vanguardas sempre determinam regras. A minha mulher, que era pesquisadora de música popular, a Santuza Cambraia Naves, dizia que a Tropicália era a primeira vanguarda inclusiva. Se você ouvir o disco Tropicália, você ouve o bumba-meu-boi, o nhenhenhém, e tudo isso é válido. Se você ouvir a segunda canção do disco, é horrorosamente cafona, do Vicente Celestino. O arranjo mais meloso do mundo. Tinha uma coisa de inclusão. O outro ponto central, o cerne dessa última vanguarda, foi a poesia? Não. Foi a música popular. Então, a Tropicália marca um ponto central que era ocupado pela poesia na cultura brasileira e foi deslocado para a música popular. O Caetano Veloso e o Chico Buarque são grandes intelectuais nessa época. Houve um deslocamento. A poesia perdeu a sua centralidade no Brasil e a canção popular se tornou o novo centro. O fato de o Bob Dylan ter ganhado o Nobel de Literatura mostra que o fenômeno não foi exclusivamente brasileiro. Pois bem, a música popular, que ocupou durante meio século uma certa posição de centralidade, já não é mais central. A importância que a música popular teve para a minha geração era muito maior do que para os garotos de agora. O que está na posição central agora, não sei te dizer, mas certamente não é a poesia nem a canção popular, como foi no meu tempo jovem. É o rap? Não sei. É essa nova poesia que está sendo produzida? É a videoarte? Não sei o que é. Mas a poesia perdeu a sua centralidade, mais ou menos em 1967 e 1968, com a Tropicália, naquele momento. Eu diria que, de uns cinco anos pra cá, ou dez, talvez, também já não é a canção popular. O que aconteceu com a poesia é uma coisa natural. O que é a ópera hoje em dia? Eu vou, às vezes, assistir a uma ópera transmitida no cinema, ao vivo, em Nova York, e sou a pessoa mais jovem. Eu, com quase setenta anos. O resto é tudo velhinho. A ópera já foi uma música de uma vitalidade extraordinária, as pessoas ficavam milionárias como cantores de ópera. Para você ver como são as coisas. Não acho que seja uma coisa específica da poesia, não. É uma coisa que acontece com todas as artes. A cada momento há uma ou duas artes numa posição central, e eu não saberia dizer qual é agora. A gente vê melhor em retrospectiva. O que garanto é que, na minha geração, quem dava as cartas era a canção popular. Todo mundo queria ser cantor popular. Por isso eu queria ser músico.

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Como surgiu o interesse pela tradução? Quais são os maiores desafios encontrados durante o trabalho de verter uma obra literária a outra língua?

Nunca tive o propósito de ser tradutor. Na verdade, comecei a traduzir por acaso. Eu estava morando na Califórnia, e tinha uns amigos e colegas da faculdade de Cinema que gostavam de poesia. Aí, eu pegava alguns poemas e letras em língua portuguesa, músicas da Tropicália, e traduzia para o inglês. Isso era uma coisa que fazia de brincadeira. Quando cheguei ao Brasil, estava escrevendo meus contos em inglês. A primeira tarefa que fiz, quando vi que ficaria por aqui mesmo, foi traduzir aqueles contos para o português, a fim de retrabalhá-los. Eu era professor do IBEU, um curso de inglês, e um colega de trabalho, também professor da área, disse que tinha uma editora em Copacabana precisando de tradutor, era a Imago. Fiz um teste e comecei a trabalhar na editora. Foi aí que comecei a carreira de tradutor. Quando me contratam na PUC, alguns anos depois, eu já tinha certo nome como tradutor. Eles estavam precisando de um professor para dar uma disciplina de Tradução Literária. O professor que comandaria a disciplina havia adoecido às vésperas de começar o semestre. Eu era aluno de graduação, nem tinha me formado ainda, e disseram: olha, esse aluno aí é tradutor e professor de tradução no IBEU. Quando vi, me deram uma turma. A partir daí, comecei a ter um envolvimento muito grande com o ensino de tradução. Ano passado, completei quarenta anos como professor da PUC. De lá pra cá, venho traduzindo muito. Dos cento e vinte livros, dez foram do português para o inglês; e os outros, do inglês para o português. Traduzo muita ficção, poesia também, embora não com tanta frequência. E, ocasionalmente, ensaios. Minha formação na PUC foi de Linguística, não de Literatura. Quando você faz tradução, é o momento em que vê e sente na carne o que significam aquelas abstrações que você estuda nos cursos de Linguística. A questão de que não há uma correspondência exata. A arbitrariedade e a delimitação do campo semântico ligado a uma palavra. Você observa, por exemplo, que uma determinada língua vai dispor de uma variedade de recursos que outra língua não dispõe. E vice-versa. No inglês, você tem uma abundância de verbos em movimento, além de substantivos e adjetivos ligados à percepção sensorial, que não há equivalência na maioria dos verbos de línguas neolatinas. Não é um problema do português, porém do latim. Nenhuma língua neolatina tem isso. Quando se traduz uma obra de ficção ou mesmo um poema para o português, esbarra-se na ausência de vários itens lexicais. No caso da poesia, por exemplo, as palavras inglesas em média têm uma ou duas sílabas. As palavras portuguesas em média têm três ou quatro sílabas. Se você deseja manter a contagem silábica de um verso ao verter para o português, vai precisar fazer um corte. Então, você tem um outro problema na hora da tradução de poesia: a questão de as palavras portuguesas serem mais longas. A tradução sempre envolve um grau de adaptação. Você sempre vai precisar fazer modificações e cortes para que a obra funcione em outra língua. Trabalhei com vários poetas, mas há dois em que fiquei anos trabalhando, o Wallace Stevens, que fiz uma antologia em 1986 e, exatamente, trinta anos depois, fiz uma antologia ampliada e corrigida, e a Elizabeth Bishop, que comecei traduzindo as cartas e acabei mergulhando na poesia. Fiquei ao todo uns seis anos praticamente mergulhado na obra dela e traduzindo. É muito interessante quando você entra na obra de um poeta, quando fica anos trabalhando com aquele poeta, percebe que cada escritor pega o idioma dele para dar uma utilização idiossincrática, valorizando certas coisas daquele idioma. Quando você pega e traduz outro poeta já não é a mesma coisa, porque a língua que ele trabalha já é de uma maneira um pouco diferente e você vai ter que fazer mudanças para o português. É um processo fascinante e o que você mais aprende nisso tudo é lidar com a sua própria língua, que, neste caso, é a língua portuguesa.

Em Nenhum mistério, noto que alguns temas dialogam com algumas de suas obras anteriores. Mas neste último livro parece haver uma ausência de sentido para as coisas. A ausência é uma das palavras que enxergo muito nitidamente durante a leitura...

Nesse livro, trabalho com temas que estão presentes desde o meu primeiro. Alguns que são presentes em toda obra. É claro que, com o tempo, as coisas que escrevi com dezoito e dezenove anos já não são mais as mesmas que vou tematizar agora, com quase setenta. A maneira e a abordagem vão mudando, mas acho que tem um eixo comum. Peguei uma questão básica com Wallace Stevens, um poeta da geração modernista americana, importante para a minha formação. O grande problema dele é o seguinte: a religião perdeu sentido, Deus morreu, mas precisamos colocar alguma coisa no lugar. E essa coisa que vou colocar é o belo, é o estético. Tem um poema lindíssimo, chamado Manhã de domingo, no qual ele elabora exatamente essa ideia sobre de que modo o culto ao belo vai substituir a religião. Aí eu pertenço a uma geração diferente. Tal como o Wallace Stevens, tenho uma religiosidade zero, completamente zero. Só que não sinto isso como ausência, Stevens acha que tem que colocar alguma coisa no lugar, que é o belo. A minha formação filosófica é muito parca, muito escassa. Um dos poucos filósofos que li foi Sartre, que estava muito na moda quando eu era jovem. Li muito sobre o existencialismo. Uma coisa que ficou na minha cabeça, e que o Sartre dizia, é a seguinte: nenhuma vida tem um sentido determinado. O sentido determinado da vida só faz sentido depois que você morre. Aí, retrospectivamente, você vê em que lógica está aquilo. A lógica que está naquela vida foi construída por aquela pessoa, ou não. Se a pessoa não quiser fazer nada, a vida dela não vai ter sentido nenhum. Então, uma questão que me interessa desde o meu primeiro livro é de que modo você vai dar sentido à realidade, à sua vida, à sua existência e de que modo você pode trabalhar esse tema em palavras, em poesia. Acho que este é o grande tema que será encontrado em todos os meus livros, de uma maneira ou de outra. É claro que, em cada momento, você vai ter ângulos diferentes. Esse último livro é um pouco diferente dos outros à medida que ele foi escrito sob um impacto de uma perda muito grande. Minha mulher morreu no dia do lançamento de meu livro anterior [Formas do nada]. Então, passei todos esses anos, e até agora, trabalhando muito a questão da perda. O que mais marcou minha vida foi isso. Em Nenhum mistério, a questão da ausência de sentido em tudo está muito estruturada em torno da ideia da perda. O que é perder uma pessoa que era a sua referência principal na vida. Agora, em torno desse tema, volta também a questão da construção do sentido do poema, o que é escrever poesia... A série mais longa do livro chama-se Caderno, que é exatamente sobre a questão da escrita em geral e da escrita poética em particular. Acredito que esses temas estarão presentes em todos os meus livros. São os temas com os quais venho me debatendo esses anos todos. Acho que vou morrer trabalhando com eles.

Por que a literatura?

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Porque é só o que sei fazer. Gostar mesmo, eu gosto é da música. Nunca escondi isso. Se eu pudesse escolher o que escrever, queria ser romancista. Mas você tem de trabalhar com o que tem, com as suas limitações. E descobri que o que sabia fazer melhor realmente era trabalhar com a poesia. O poema lírico, o poema curto. É uma coisa que venho desenvolvendo. Comecei com o inglês. A primeira língua em que li poesia foi o inglês, depois passei para o português. Até hoje faço uma certa passagem de uma língua à outra. E fico nisso porque é o que sei fazer. Mas não tenho nenhuma ilusão quanto à centralidade da poesia, que seria a coisa mais importante, como muitos poetas do século 19 diziam. É a linguagem central, é a escrita por excelência... Nunca tive essa ideia. Também não tenho essa ideia de o que dá sentido a minha vida é a escrita. Gosto de tudo do Kafka. Gosto muito das cartas e dos diários. Acho que é o que eu mais gosto dele. E, nos diários, tem uma passagem que li, por volta dos meus dezessete anos, e que me marcou profundamente. Ele diz assim, olha, eu só existo com a literatura, a única coisa que faz sentido é a literatura e fora da literatura eu não existo. Me lembro que quando li isso, na época, fiquei muito chocado. Pensei: poxa, não posso ser escritor, não sou como o Kafka. Para mim, tem mil coisas tão importantes quanto, ou mais do que, a literatura. A começar pela música e pelas pessoas. Não tenho essa relação que o Kafka tem com a literatura. Essa crença do poder redentor da literatura, e que o Wallace Stevens certamente tinha; assim como boa parte dos poetas românticos e modernos tem. Ou menos ainda as preocupações metafísicas do Eliot ou do Rilke. Não tenho nada disso, na verdade. Escrevo poesia porque aprendi a fazer isso. Gosto de escrever poesia, me dá prazer, e é uma maneira que tenho de me ajudar a construir um sentido para a minha vida, que é, em última análise, o que estou interessado em fazer.

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