A tirania é um fenômeno que, acima de tudo, desvanece a linha entre a justiça e o arbítrio venal. Quando isso se dá, abrem-se as portas para o caos, fragilizando toda a estrutura de um governo. É impressionante como o gênero dramático se presta (talvez mais que os demais) a retratar perfeitamente as atrocidades advindas de tal fenômeno.
Vêm-nos à mente as terríveis figuras de Ricardo III e Macbeth, apenas para ficar no drama elisabetano; porém, este paga tributo às grandes tragédias greco-latinas que, de forma pioneira, investiram em brilhantes análises sobre o poder, imortalizando em cenas inesquecíveis os abismos a que a dignidade humana pode descer quando senta-se em um trono.
Tiestes, tragédia do escritor e filósofo Sêneca, em edição bilíngue, é mais um exemplar desse tema.
O mito da dinastia dos tantálidas é relativamente bem conhecido e a ele está intimamente ligado o drama em Tiestes. O mais ilustre e remoto patriarca dessa família, Tântalo, é famoso por sofrer no tártaro um suplício horrível, consequência de seu ato cruel e prepotente de querer testar a onisciência dos deuses mitológicos matando seu filho Pélope e servindo-o em banquete a estes. Por seu ato, é condenado a padecer de fome e sede inauditas nas profundezas, tendo a seu alcance árvore com frutos e um lago que, não obstante, dele se apartam quando busca se saciar.
Tântalo, contudo, no contexto da peça, é mera sombra trazida por uma das Fúrias, no limiar do drama, a fim de corromper, com sua aura danada, o ambiente e o íntimo dos personagens. Simbolicamente, temos aqui o vício que se propaga hereditariamente pelos descendentes, num ciclo de danação sempre renovado.
É na figura de seus dois netos que assentará tal herança. Atreu é famoso por sua (suposta) paternidade: Agamenon e Menelau, heróis na guerra de Troia, são seus filhos. Tiestes é seu irmão. Na peça, ele e seus três filhos encontram-se exilados, fruto de sua ambição em usurpar o trono de Atreu, além de lhe ter seduzido a esposa. A fúria selvagem do monarca é insaciável: à guisa de vingança, convida o irmão a regressar, simulando reconciliação, mas secretamente assassina os sobrinhos, renovando o crime do avô no banquete atroz que promove a Tiestes, espetáculo tão terrível que faz o próprio sol retomar sua marcha, deixando o mundo em trevas.
Transgressão
A sina dos tantálidas define-se a partir do crime inaugural do remoto patriarca (paráfrase humana do que perpetrava a tirania de Cronos/Saturno na esfera dos numes): a ele a vingança atrida paga tributo, mas as ressonâncias se estendem por gerações: encontram-se na imolação de Ifigênia pelo pai Agamenon, na violação de Pelópia pelo pai Tiestes. Essa dinastia é marcada pelo abuso familiar, tudo a partir daquela ação. É expressivo que o primeiro ato da peça se dedique à condução de Tântalo de volta ao mundo dos vivos, compelido pela Fúria, que assim vaticina as implicações dessa presença:
Avante, detestável
espectro, e atiça a fúria em teus ímpios penates.
Dispute-se no crime e, no alternar das chances,
saque-se a espada. Nem limite tenham as iras,
nem pejo. Instigue as mentes um cego furor,
dure o ódio paterno e longo desatino
perpasse as gerações
Ao se admitir que a peça seja das últimas escritas por Sêneca (que fora preceptor do imperador Nero e foi por este perseguido, tendo que recorrer ao suicídio), as imprecações da Fúria transcendem os infortúnios que assolarão até os descendentes tantálidas, ela alude a fatos históricos: a preterição de Britânico em favor de Nero pelo imperador Cláudio, o assassinato deste pela esposa Agripina e o desta e de Britânico por Nero:
O irmão aterrorize o irmão e o pai ao filho
e o filho ao pai; morte ruim os filhos tenham,
porém, pior nascença. Ameace seu marido
a esposa odienta
Como se vê (e como enfatizam os estudos analíticos dessa edição), Tiestes ganha dimensão universal por consubstanciar, em sua essência, a força corrosiva do poder e suas consequências, mesmo em meio ao seio familiar.
Atreu é esse retrato extraordinário do tirano sedento em sua vontade, tanto quanto seu avô o é no tártaro. O banimento de seu irmão, que seria uma sanção penal legítima, não o satisfaz. Sua transgressão real é dupla: de um lado, o assassinato, do outro a transferência da pena para os descendentes.
Exemplar no enfoque a essa antinomia é o diálogo do ato dois entre Atreu e seu conselheiro (símbolo dos valores éticos caros à ordem):
Conselheiro
Queira o rei vida honrosa e todos vão querê-la.
Atreu
Onde só vida honrosa cabe ao soberano
é precário o reinado.
Conselheiro
Onde não há pudor,
respeito à lei, decoro, afeto, lealdade,
tudo é instável.
Atreu
Decoro, afeto, lealdade
são bens do homem comum, reis façam o que bem queiram
A ira de Atreu o conduz então ao ato antinatural, desproporcional ao agravo — o que deve ser visto pela ótica da filosofia estoica de Sêneca. Por consequência, o caos assume dimensões cósmicas, e o gozo do rei só pode inspirar pavor ao leitor/espectador:
Atreu
Ando de par com os astros e os supero todos!
Atinge o alto dos céus a minha fronte altiva!
Obtenho agora o emblema e o trono de meu pai.
Dispenso os deuses; alcancei meus votos todos (...)
Quem me dera deter os deuses fugitivos
e trazê-los à força, todos, p’ra que vissem
a ceia da vingança (...)
Ecoa em tais versos a herança remota de Tântalo. Para além dela, e da pavorosa tragédia que se abate sobre Tiestes, a obra enfoca as arbitrariedades do poder, e como as consequências da intemperança e do vício configuram-se catastróficas quando se instalam no assento régio.
Dramaturgia e a edição
Essencialmente filósofo, Sêneca concentra-se mais na interioridade de seus personagens que na mise-en-scène propriamente dramática. Estes não apenas sentem, mas observam como o fazem. Os diálogos não apresentam dinâmica interação, pelo contrário: a auto-observação, os símiles (e outras figuras de retórica), descrições alentadas expressas em falas extensas, soando mais como solilóquios, atestam não apenas a influência do filósofo, mas também a de vertentes em voga na época, como os declamadores e rétores.
As setentias, no entanto, sobressaem em sua rica variação. É outra marca expressiva do autor:
Ter um reino é fortuito, é uma virtude dá-lo
Saber viver sem reino, este é o maior dos reinos
Não se pense, porém, que o filósofo obscureça o poeta. O trato com a linguagem, tanto nas ferramentas mobilizadas como na métrica, não dá margem para que o leitor duvide que esteja diante de um hábil artífice, mesmo que num formato dramático distante da expressão moderna.
A tradução de José Eduaro S. Lohner devota-se a, de modo aproximativo, verter toda a exuberância do original. Opta, em grande parte, pelo alexandrino, apurando o ouvido nas nuances rítmicas do coro. Seu esforço vai além: suas notas aos versos elucidam sutilezas, traçam influências, contextualizam a obra. Contudo, a fim de não quebrar a fluência da leitura, recomenda-se atentar às notas numa segunda leitura, pois são extensas e constantes.
Os estudos que se seguem à obra são minuciosos, eruditos, e enriquecem muito a experiência. Da explanação do mito, passando pelo estilo do autor, e compreendendo até um excerto traduzido por José Feliciano de Castilho, não se pode exigir mais dessa edição.
Tiestes é mais um capítulo do rico e excitante panorama da tradução greco-latina no país, e como tal se faz imprescindível.
© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.
Eleição sem Lula ou Bolsonaro deve fortalecer partidos do Centrão em 2026
Saiba quais são as cinco crises internacionais que Lula pode causar na presidência do Brics
Elon Musk está criando uma cidade própria para abrigar seus funcionários no Texas
CEO da moda acusado de tráfico sexual expõe a decadência da elite americana