Último filme da carreira de Peter Sellers traz comicidade e reflexão na medida certa.| Foto: Reprodução/Warner Bros.
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Conta-se que Steven Spielberg disse certa vez que, quando crescesse, queria ser uma criança. Fosse isso verdade ou não para o diretor, certamente era para o ator Peter Sellers (1925-1980). Mais conhecido pelo trabalho de comediante, como o inspetor Jacques Clouseau de A Pantera Cor-De-Rosa (1963) ou o desajeitado indiano de Um Convidado Bem Trapalhão (1968), foi em Muito Além do Jardim (1979) que fez o grande papel de sua carreira - ou, mais precisamente, de sua vida. 

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O personagem Chance, protagonista do filme, foi sentenciado a partir de um acontecimento trágico da família do ator. Seu irmão mais velho e primogênito de seus pais, o casal William Sellers e Agnes Doreen, morreu logo depois de nascer, e se chamaria Peter. Como acontece com alguns traumas, os dois decidiram nunca mais falar no assunto e, assim, o fato se tornou ainda mais presente. O segundo filho nasceu e foi também nomeado Peter, carregando esse passado por boa parte da vida.

Por conta disso, Peter Sellers foi excessivamente protegido e mimado, o que causou um amadurecimento tardio. O ator sempre teve dificuldades de relacionamento e chegou a confessar que nunca teve muita sorte com pessoas. Costumava dizer que, para além das telas, era um “ninguém”.  

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Mas não é isso que mostram as produções que contaram com seu talento. A autenticidade do autor tornava seus personagens marcantes, impactados pela expressão que não entregava muito além do necessário para provocar riso ou choro. Seu olhar, por si só, já era um convite a despertar reações. E isso fica claro em Muito Além do Jardim

O filme, dirigido por Hal Ashby e disponível na Apple TV, é baseado em um livro de sucesso, O Vidiota (1971), de Jerzy Kosiński. O título já revela uma abordagem bem menos simpática com Chance. Trata-se mais de uma crítica ao modelo americano de sociedade, amplamente dominado à época pela TV. Crítica que permanece no filme, mas de maneira lateral, e que hoje poderia perfeitamente ser transferida para as telas dos celulares. 

Vida, sorte e arte se encontram 

Muito Além do Jardim conta a história de um ingênuo jardineiro que passa a vida em frente a uma televisão. Isso até ser interrompido por um evento, no quarto ao lado, que sequer compreende: o dono da casa, que o filme não entrega ao certo se é seu pai, morre. Assim, ele se vê obrigado a sair pela primeira vez. Elegante, de chapéu e sobretudo, dá seus primeiros passos em uma Washington decadente. 

É só a partir de um lance de sorte (chance é um dos significados de sorte em inglês e em francês) que ele realmente inicia sua vida. Enquanto via sua imagem refletida na TV de uma vitrine, um carro, ao estacionar, avança sobre sua perna. O motorista pede desculpas e a passageira, uma mulher rica, faz questão de levá-lo até sua casa.

A casa se revela uma mansão, pertencente ao marido dela mulher. Ben é o rico empresário que sofre de uma doença terminal. Ele logo se simpatiza com o jardineiro, assim como todos os empregados da casa. A espontaneidade de Chance é vista como uma inteligência instintiva.

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A partir daí ele inicia uma lenta jornada rumo ao amadurecimento, que não chega a ser completo, até porque é percorrido a passos leves, mas que consegue ser levado ao paradoxo na última cena do filme. Fato é que as forças propulsoras deste processo agem de alguma maneira sobre Chance. Enquanto recebe a primeira morte da sua vida com indiferença, a segunda lhe causa uma ligeira contração na sobrancelha direita, toque sutil e de gênio do ator. Também ele tateia o campo do amor e, pelo badalar do relógio, vê que o tempo se perde. 

O desfecho de Muito Além do Jardim seria, a princípio, fiel ao livro, porém o diretor resolveu mudar para um bem mais ambíguo. Até hoje a cena suscita discussões sobre seu significado, provocando, nos créditos, aquela sensação de querer saber mais do filme. A frase “a vida é um estado de espírito”, ecoando ao fundo, grava a cena com um toque onírico. 

Posteriormente, Peter Sellers ainda fez O Diabólico Dr. Fu Manchu (1980), um total fracasso. Ele morreu no mesmo ano, com apenas 54 anos. Como esse final da sua biografia é frustrante, é mais interessante - e certamente mais fiel aos desejos dele - imaginar que Sellers, na verdade, morreu ao final de Muito Além do Jardim.

O filme está disponível apenas para aluguel no YouTube, Google Play Filmes e Prime Vídeo.