Um filme em que um personagem brinca de Deus e, entre outras pirações, cria um animal cruzando um cachorro com uma galinha. Em que a protagonista se encanta pelo socialismo enquanto ganha a vida alegremente como prostituta. Em que o noivo dessa protagonista aceita todos os caprichos da mulher, por quem se apaixonou quando ela era basicamente um bebê. Essas são apenas algumas das heresias e imoralidades de Pobres Criaturas, um dos grandes destaques do próximo Oscar, com pesadas 11 indicações.
OK, o filme é uma comédia – do grego Yorgos Lanthimos, um realizador bastante peculiar, louvado com entusiasmo desde O Lagosta (2015) –, portanto seu enredo não deve ser analisado a ferro e fogo. Antes de Pobres Criaturas, o diretor já havia causado espécie numa gradação bem menor no fascinante A Favorita (2018), protagonizado pela mesma Emma Stone que volta a ser sua estrela principal. Mas talvez ele tenha ido longe demais dessa vez. Tanto que a obra vem sendo saudada como a mais criativa e ousada dentre as concorrentes ao Oscar. Só que seu potencial para gerar asco, especialmente em plateias conservadoras, não pode ser ignorado.
Emma, no filme, vive Bella Baxter, uma “criação” do excêntrico cirurgião Godwin Baxter (Willem Dafoe), chamado na intimidade de God. Ele presenciou o suicídio de uma mulher grávida e levou o corpo para o seu laboratório. Ao constatar que o feto ainda estava com vida, God decidiu implantar o cérebro do bebê na mãe e reanima-la, sem buscar qualquer informação ou autorização com seus familiares, como se na Londres vitoriana em que a história é ambientada essa não fosse uma questão. Para ajudar no desenvolvimento de Bella, que se comporta como um neném no começo do longa, God escala o assistente Max McCandles, que rapidamente se apaixona por aquela criança em corpo de mulher. Podemos chamar de pedofilia se o cérebro é infantil e a carcaça não?
Sexo, pasteis de nata e fado
Pobres Criaturas engata com a chegada em cena de Duncan Wedderburn (papel de Mark Ruffalo, cuja indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante soa exagerada), advogado mulherengo responsável por redigir o contrato nupcial entre Bella e McCandles. Em vez de apenas realizar seu trabalho, ele tira Bella daquela redoma e a leva para conhecer Lisboa, na passagem realmente bacana do filme. Não pelas cenas de sexo explícito entre a moça e o advogado! Mas, sim, pelo encantamento de Bella com a capital portuguesa. Além de se fartar de pasteis de nata, devorados em uma só bocada, ela dá de cara com uma fadista num beco qualquer e se emociona com aquela música sublime. No caso, a fadista é a cantora Carminho, uma das mais celebradas do gênero.
O roteiro rocambolesco segue num navio, onde Bella resolve doar toda a grana do advogado para os pobres. Expulso da embarcação por falta de fundos, o casal se encontra sem eira nem beira no inverno parisiense, quando Bella descobre que pode vender seu corpo por dinheiro. Sua decisão de trabalhar numa casa de prostituição enlouquece Wedderburn e eles se separam. Esse é o momento emancipatório de Bella, quando ela se “empodera” como mulher virando meretriz – e também descobrindo novos prazeres sexuais ao transar com uma colega de lupanar. Além de fazer essa ode à “profissão mais antiga do mundo” e ao lesbianismo, Pobres Criaturas coloca o socialismo em pauta. Bella é chamada para reuniões sobre a ideologia, com a qual se identifica por completo. Nesse ponto, há um vacilo do diretor grego: ele permite que o espectador pense que somente alguém com um cérebro de criança transplantado na cabeça seria capaz de cair na conversinha do socialismo.
Muito exuberante nos aspectos técnicos, Pobres Criaturas ruma para o seu encerramento com novas imagens capazes de desagradar paladares mais tradicionais. God faz um comentário positivo sobre a cocaína, o marido de Bella (que até o suicídio se chamava Victoria Blessington) reaparece para resgatar a esposa e depois bola um plano para mutilar a genitália dela, Bella reata com McCandles e insere na relação a prostituta que virou sua parceira sexual em Paris... Isso só para citar alguns momentos que podem chocar. Também podem motivar risos ou as duas coisas ao mesmo tempo, claro. O fato é que, se as 11 indicações ao Oscar e os elogios efusivos que Emma Stone vêm colecionando pela atuação já tinham sidos decisivos para você planejar a ida ao cinema no afã de assistir ao filme de Yorgos Lanthimos, aqui foram listadas várias razões para sua permanência em casa. Agora é por sua conta e risco.