Não acompanho o mundo cão. Não gosto do mundo cão. Prefiro acreditar que o mundo cão nem existe. Daí o porquê da minha relutância inicial em assistir a “Isabella: O Caso Nardoni”, dirigido pelo ex-Casseta Claudio Manoel e que tem meu amigo Felipe Flexa como um dos roteiristas. E eis já aqui o primeiro motivo para você assistir ao documentário disponível na Netflix: não se trata de uma exploração do mundo cão.
Outro motivo. Na verdade o principal. “Isabella” não é exatamente um documentário sobre o crime que, há quinze anos, mobilizou o país; é um documentário sobre mim. Sobre você. Sobre nós que acompanhamos o caso e dele formamos uma opinião a partir das informações que íamos obtendo pela imprensa. Do Ratinho ao Jornal Nacional, passando pelo Datena e pela capa da revista Veja – que na época atestou em letras que o clichê me obriga a dizer que eram garrafais: FORAM ELES.
Verdade e Justiça
Isso não quer dizer que “Isabella” chame para si a responsabilidade de defender a inocência de Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá. De jeito nenhum! O documentário não é passapanista, embora bote uma pulguinha toda serelepe atrás de nossas orelhas. Mas ele mostra, sim, como a própria busca pela verdade pode estar comprometida quando, para se satisfazer os anseios da multidão, toda a estrutura do Judiciário parte de pressupostos questionáveis e cede ao velho e mau sentimentalismo de que fala Theodore Dalrymple.
E aqui estou me referindo a uma verdade criminal, por assim dizer. Mas a reflexão proposta pelo filme vale também para as verdades individuais que todos buscamos, bem como para a verdade política que tanto atrai nosso interesse. Esse, aliás, é mais um motivo para você assistir a “Isabella”. Porque, fazendo uma associação livre e criativa com a nossa realidade, é possível e até desejável que ao final do filme nos perguntemos se, em casos de grande repercussão pública, existe mesmo alguma possibilidade de se fazer justiça. Existe?
Estou falando de Justiça mesmo. Aquela com jota maiúsculo e todo trabalhado no gótico. E não a vingancinha mundana a que infelizmente estamos acostumados. Pegue o caso dos presos no Oito de Janeiro, por exemplo. Ou então o caso recente das joias envolvendo Bolsonaro. Ou, se preferir, pegue o caso consumado do Lula. Afinal, só soltamos fogos de artifício (você não?) quando Lula foi condenado ao xilindró porque a sentença de Sergio Moro coincidia com nossa opinião. Bom, pelo menos coincidia e ainda coincide com a minha.
Demasiadamente humanos
Por falar em Moro e Lula, e ainda no delicioso terreno das associações mais ou menos livres, me lembrei de outro juiz, Alexandre de Moraes, para mim hoje o maior símbolo de uma Justiça que abdicou do seu nobilíssimo objetivo de ser... justa. Porque o filme mostra – e essa é uma das maiores qualidades da produção – como são humanos, demasiadamente humanos, insuportavelmente humanos e às vezes até revoltantemente humanos aqueles responsáveis por atestar a culpa ou a inocência de alguém em qualquer circunstância. E aqui me refiro também a nós da imprensa. Ô, raça!
Há vaidade, soberba, ambição e um monte de preconceitos. Há muita vontade de estar certo e muito medo de estar errado. Há pressupostos culturalmente formados e que nada têm a ver com o caso concreto. Com o assassinato trágico de uma criança de apenas cinco anos. E é para essas pessoas assim tão falhas que o Estado (e a sociedade, no caso de nós, da imprensa) dá o poder absurdo de decidir o destino de outras pessoas igualmente falhas. De condená-las à prisão ou ao degredo moral. Um poder na teoria exercido com a frieza da técnica; mas que na prática está todo contaminado pelo pecado original.
Emendas imperfeitas
Já perdi a conta dos motivos para você assistir a “Isabella”, mas este é outro: o documentário mostra um aspecto da sociedade que provavelmente será ignorado pelos espectadores viciados em reagir ao caso apenas aos gritos irrefletidos de culpado! ou inocente!. Me refiro às consequências reais e trágicas da dissolução da família, da guerra ao casamento tradicional, entre homem e mulher e para a vida toda, e do feminismo, com sua falsa promessa de libertação das mulheres.
É algo sutil. Uma névoa de moralidade em meio à narrativa jornalística. Mas que ao espectador atento deixa claro: antes mesmo de ser jogada daquela janela pelo próprio pai ou por quem quer que tenha cometido o crime, a menina Isabella Nardoni, filha de pais separados que a conceberam ainda na adolescência, já era vítima de um desarranjo cheio de emendas imperfeitas.
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