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Foi em meados dos anos 1960, depois de Eric Clapton já ter saído dos Yardbirds e estando na banda de John Mayall (John Mayall’s Bluesbreakers), que muros da cidade de Londres apareceram pichados com a frase: “Clapton é Deus”. Uma foto de uma das pichações se tornou icônica e até hoje alimenta a lenda do deus da guitarra.
Pois este deus está entre nós, em uma breve turnê sul-americana nesta semana, tendo passado por Buenos Aires (20), Curitiba (24), Rio de Janeiro (26), e neste fim de semana ele se apresenta em São Paulo (28 e 29). Estive no show de Curitiba e posso confirmar que a lenda não é lenda. Clapton é mesmo um deus da guitarra e, se você tem a oportunidade de assisti-lo, não perca a chance.
Eric está com 79 anos de idade, o que por óbvio traz limitações para se apresentar. Razão pela qual não faz mais shows longos, algo natural para alguém com uma carreira de mais de 60 anos e uma coleção de sucessos que preencheria bem mais do que a média que tem feito atualmente, em torno de 1h30.
É importante saber disso para não se frustrar caso ele não toque algumas de suas músicas mais conhecidas por aqui, como Layla e Wonderful Tonight, que escutamos toda semana em qualquer rádio easy listening. Em Curitiba e Buenos Aires, por exemplo, não tocou nenhuma delas, assim como tampouco I Shot the Sheriff, sua cover de Bob Marley que foi número 1 nas paradas de sucesso por bastante tempo e contribuiu sobremaneira para popularizar o trabalho do jamaicano. Mas Tears in Heaven e Cocaine estarão lá, garanto. Embora seus shows nunca sejam os mesmos, mudando uma ou outra música, a estrutura permanece a mesma, dividida em três partes.
Os primórdios do inglês
Na primeira, fazemos uma jornada ao início de sua carreira, começando com Sunshine of your Love, a sua preferida da época do Cream, e revisitando então os blues Key to the Highway, que escutou pela primeira vez aos 14 anose foi decisivo para querer ser guitarrista, gravando-a pela primeira vez em 1970, como Derek and the Dominos; e Hoochie Coochie Man, composta por Willie Dixon e tornada famosa por Muddy Waters, em 1954, sendo considerada uma das músicas que deu forma ao rock and roll.
Esta parte se encerra com o que parece um retorno à época do Cream, com Badge, mas que na verdade é uma parceria sua com George Harrison, feita em retribuição à participação de Clapton em While my Guitar Gently Weeps no álbum branco dos Beatles.Não deixa de ser uma forma de simbolizar o que foi os anos 1970 e 1980 para Eric, naufragado em álcool e drogas. A letra da música não significa nada, sendo o título fruto de um erro de leitura de Clapton, que em vez de ler bridge, como estava escrito no papel dado por Harrison, leu badger e assim ficou.
É o período em que também se envolveu com a esposa de Harrison, com quem se relacionou depois deles terminarem o casamento. Ela é a musa inspiradora tanto de Layla quanto Wonderful Tonight, cujas ausências parecem ter significado aqui, pois deste período somente Cocaine aparece no repertório do show.
Velho blueseiro
O disco que mais se faz presente no show é Journeyman, de 1989, o primeiro depois de começar a sério sua reabilitação do álcool e das drogas. Reabilitação que também foi da relação com Pattie Boyd, que já não era sua esposa, mas seguia sendo musa em canções como Pretending e Old Love, presentes na terceira parte do show. Antes delas, porém, vem a segunda parte, acústica, com Eric sentado numa cadeira e tocando violão ao melhor estilo “velho blueseiro”, que ele mesmo disse ser um, em entrevista recente a um canal no YouTube.
É o momento em que respira, descansa, claramente se sentindo mais à vontade e transformando o local em sua sala de estar, fazendo o espectador se sentir um privilegiado por estar ali a escutar outros blues das antigas (como Nobody Knows When You’re Down and Out), algumas músicas famosas suas ou em sua voz (como Running on Faith e Change the World), inclusive uma nova (The Call, que sairá no disco a ser lançado agora em outubro).
Esta seção termina com Tears in Heaven, com a plateia participando como se fosse parte da banda. A história por trás da comovente canção é famosa. Eric perdeu seu filho, Connor, em 1991. O menino caiu da janela de um apartamento em Nova York. De lá pra cá, Clapton reconstruiu sua vida, casou-se, teve 3 filhas e até hoje segue participando do programa de recuperação dos Alcoólicos Anônimos, os famosos 12 passos para cura, ajudando outros a se recuperarem como ele.
Na mesma entrevista citada acima, Eric respondeu a uma pergunta sobre a razão de não se aposentar, de seguir fazendo o que faz. Disse acreditar que a música é um agente de cura, faz parte do décimo-segundo passo, aquele em que, por se ter dado os anteriores, leva a um despertar espiritual. Ele crê que esta é sua missão, ser um agente da cura, praticando o tal passo em cada show, passando uma mensagem de paz, amor e compreensão.
Parece ser a razão pela qual voltou a tocar Tears in Heaven. Em 2004, disse que não a tocaria mais porque sendo parte de um processo de cura terminado, tocá-la a partir dali seria reabrir uma ferida, não curá-la. Mas sabia que isso seria temporário, pois tinha consciência de que a música ajudava outros a viver o luto. Esta foi a razão, aliás, para ter permitido que a canção viesse a público em 1991. E, pela mesma razão, voltou a tocá-la, para nossa sorte.
Salvo por Nossa Senhora
Vem, então, a terceira parte do show, novamente eletrificado, mas, desta vez, Eric parece rejuvenescer no palco, transformando os solos de guitarra de Old Love e Crossroads em algo transcendental, hipnotizando a plateia, conduzindo-a num transe musical em que já não tocava para ninguém, nem para si. Seria para o demônio, como diz a letra de Robert Johnson em Crossroads, e que criou a lenda de que muitos artistas, como Johnson, morrem aos 27 anos porque é a idade em que o demônio viria cobrar a alma daqueles que a venderam para ele?
Não, de modo algum. Dessa encruzilhada Eric escapou. E, em sua autobiografia, contou algo que foi fundamental para ter se reabilitado. Teria visto Nossa Senhora, reavivando sua fé em Deus, crendo que foi Ele quem o resgatou. Ou seja, sua longevidade artística significa também que Deus atendeu à prece contida na letra de Crossroads, quando o eu lírico da letra cai de joelhos na encruzilhada e implora a Deus por salvação.
É neste contexto que vem Cocaine, a última (se considerarmos a do bis um epílogo), composição de J.J. Cale que ficou mais famosa com Clapton. O que parece ser uma ode à droga é ou se torna, na verdade, um hino anti-cocaína, uma droga que embora possa servir como anestésico para as dores e frustrações da vida, também “não mente/ ela não mente/ ela não mente” e, por isso, basta mirar o resultado do seu uso, que é a destruição que causa na vida dos viciados, para descobrir seu real fruto. Como vencer algo assim? Em 12 passos, que Eric Clapton deu e serve de prova e exemplo do quanto funcionam, sendo que o último deles ele repete ao vivo em cada show. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!
P.S.: No bis, Clapton retorna ao palco com uma guitarra contendo a imagem da bandeira da Palestina. Não diz nada, não defende nada, apenas manifesta simbolicamente sua opinião, que se completa com a música tocada, Before You Accuse Me, de Bo Diddley, em cujo refrão canta: “Antes de me acusar/ olhe para você mesmo”. Ou seja, a mensagem serve para todos, defensores de qualquer dos lados da guerra, inclusive o próprio artista. Quem tem olhos para se ver, veja!