“Se há tantas cabeças quantas são as maneiras de pensar, há de haver tantos tipos de amor quantos são os corações”, escreveu certa vez o conde de Tolstói em seu romance Anna Kariênina (1877), um clássico que retoma, por meio de relações interpessoais, os temas que nortearam a obra do russo, a saber: por que e onde depositamos crenças, lealdades, valores — elementos humanizantes diante dos absurdos criados por nós mesmos.
Tanto quanto há corações e formas de amar, há também uma infinidade de abordagens possíveis sobre o amor, motivo recorrente e amplo no mundo das artes. A escolhida pelo romancista norte-americano James Baldwin (1924-1987) em Se a rua Beale falasse, assim como em Tolstói, talvez nos diga mais sobre sua época e sua visão do que perfis e entrevistas.
Publicado em 1974 como sua quinta longa narrativa, o livro, ao contrário do que o título sugere, não se passa na rua de Memphis, onde o líder do movimento negro e prêmio Nobel da paz Martin Luther King sofreu o atentado que lhe tiraria a vida. No lugar da sugestão do título, um enredo que beira o melodrama clichê é apresentado ao leitor: Tish, uma jovem negra do Harlem, bairro negro de Nova York, espera seu primeiro filho enquanto o marido, o também jovem e negro Fonny, aguarda na cadeia por um julgamento que possa reverter a injusta acusação de estupro a uma porto-riquenha. O pivô do movimento contrário, obviamente, é um policial branco e racista que sustenta um testemunho falso da vítima, manipulando-a a apontar Fonny como suspeito. A partir do anúncio da gravidez feita por Tish ao marido em um dia de visita, a história alterna momentos anteriores e posteriores, desdobrando-se em cenas que, mesmo aparentemente pouco relacionadas, compõem estruturalmente o arco da prisão do jovem como um mosaico esparso.
Os clichês em que Baldwin apoia sua narrativa têm um efeito inverso: longe de escancarar a inautenticidade da obra, o drama do jovem negro vítima de racismo institucional e da jovem negra grávida e sem o amparo do pai da criança servem para, justamente, documentar e evidenciar um fenômeno de opressão insistente em seu país mesmo depois da Marcha de Selma, a saber: a destruição de famílias negras pela mão do Estado. Mas é aí que o gênio do autor se manifesta.
Em vez de fazer um drama político, Baldwin, tal qual um discípulo de Freud, prefere fazer uma investigação das intimidades que circundam o enredo. Por exemplo, entender a dinâmica entre a família de Tish, os River, e a família de Fonny, os Hunt, diante da revelação da gravidez, é entender que não existem apenas mais de um Harlem no Harlem — um deles, representado pelos Hunt, é evangelizado, moralista e, em certo grau, racista com negros de pele mais escura, caso de Tish, numa rara abordagem colorista em um romance do século 20 —, como também é enxergar o abismo de gênero entre os homens e as mulheres de ambas as famílias. Já na decisão de Fonny de ir morar com Tish no Greenwich Village, um bairro não-negro da mesma cidade, está uma tentativa de circulação social e miscigenação geográfica que ameaçava fazer água na América pós-segregação. Fonny é perseguido ali por seu antagonista, aparentemente mais refratário aos novos tempos do que os civis de seu bairro, empenhados em protegê-lo antes de tudo.
Sensível e terno em sua escolha de palavras — muito embora, por vezes, um tanto cruel com as figuras femininas que despreza —, Baldwin compõe, em Se a rua Beale falasse, um abecedário sentimental do jovem negro de sua época. Mais do que isso, tece o universo sociocultural que compõe a mentalidade dos seus. As temáticas religiosas e sexuais, por exemplo, justapostas no relato sobre a infância de Fony, que testemunhava o coito paterno após o culto de domingo, revolvem toda a construção psicanalítica que sua obra formou. Fica claro como em sua ficção a vivacidade negra do pentecostalismo, com seus gospels e danças, é fruto de uma repressão sexual aliada a uma interpretação muito mais humana do cristianismo do que aquela pretendida pela comunidade anglo-saxã. Uma espiritualidade que rejeita a tradição branca ao mesmo tempo em que afirma os corpos eróticos.
Universo sociocultural
Talvez o grande mérito de Baldwin, para além da escrita primorosa e do retrato documental de sua época e seu meio, seja a maneira com que compõe uma sociedade complexa e distante para um leitor não-negro a partir de elementos simples e sentimentos universais. A articulação entre crime, religião, sexo, gravidez, prisão, preconceito e a busca por justiça podem ser entendidos separadamente em um romance que se proponha a uma investigação dinâmica, mas só a vivência e a proximidade de Baldwin com casos de injustiça social e criminal e o preconceito perene na América do Norte socialmente segregada são capazes de abranger esses vários aspectos do romance sob um único guarda-chuva entendido como a vida do cidadão negro nos Estados Unidos.
Vale lembrar que a inspiração do enredo para o autor veio de um caso real: Tony Maynard Jr., um amigo pessoal que foi encarcerado sob a injusta condenação de ter matado um condecorado fuzileiro naval. Passando seis anos atrás das grades, sua trajetória teve grande peso nesse abrir de olhos do autor para uma institucionalização da injustiça. Tais transposições — do caso real para o relato literário e do relato literário específico para a amplificação de sentimentos universais — são as verdadeiras armas de um autor que se preocupa em firmar seu lugar na história como alguém que não deixa a arte lhe desviar o olhar da realidade um segundo sequer. Em tempos de Black Lives Matter e outros movimentos desesperados ante a insensibilidade do governo Trump, que ganharam cobertura midiática internacional, fica fácil entender a atualidade e a contundência do comentário de Baldwin acerca do tema — a adaptação do romance para o cinema dirigida por Barry Jenkins é mais um ponto de apoio a reforçar isso.
Mas Baldwin não é um autor da reação raivosa diante da injustiça. Prefere as palavras delicadas e a humanização por meio da exploração da intimidade em comum. Essa que cria pontes entre pessoas diferentes. A mesma que não nos deixa esquecer que o outro também é parte do eu. A mesma que não nos deixa esquecer que humano é uma raça.
© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.
Como a PF costurou diferentes tramas para indiciar Bolsonaro
Cid confirma que Bolsonaro sabia do plano de golpe de Estado, diz advogado
Problemas para Alexandre de Moraes na operação contra Bolsonaro e militares; assista ao Sem Rodeios
Deputados da base governista pressionam Lira a arquivar anistia após indiciamento de Bolsonaro