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Que país é este?

O rock dos 80, o Brasil 40 anos depois e a certeza de que ainda somos “inútil”

Cazuza e Frejat na apresentação do Barão Vermelho no primeiro Rock in Rio
Cazuza e Frejat na apresentação do Barão Vermelho no primeiro Rock in Rio, em 1985 (Foto: Reprodução)

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Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito indiretamente para Presidente da República. Naquele mesmo dia, uma terça-feira, acontecia o quinto dia do primeiro Rock in Rio. Tornou-se emblemático que Cazuza, então vocalista da banda Barão Vermelho, anunciou o fato ao público presente e, para comemorar, dedicou a música Pro Dia Nascer Feliz.

O movimento pelas “Diretas Já”, surgido em 1983, crescia cada vez mais, tendo como um de seus hinos a música Inútil, do Ultraje a Rigor, que lançaria seu primeiro álbum em julho daquele 1985. A música, porém, já era conhecida por ter sido lançada em um compacto dois anos antes, sendo tocada e cantada pelo público em todas as manifestações. Tão famosa que Ulysses Guimarães mandou o porta-voz do governo, Carlos Átila, que acusava a campanha das diretas de estar desestabilizando o processo sucessório que elegeria Tancredo, escutar a música.

O Ultraje não tocou naquele Rock in Rio, mas Inútil foi incluída no setlist dos Paralamas do Sucesso. Outra banda que não tocou no evento lançaria seu primeiro disco em 1985 – e também retrata aquele momento histórico – foi a Plebe Rude. Proteção, que se tornaria uma de suas músicas mais famosas, foi composta em razão do acontecido em Brasília em abril do ano anterior, quando a Emenda Dante de Oliveira, que estabeleceria eleições diretas para Presidente da República, foi derrotada no Congresso, e houve repressão às manifestações que aconteciam pela capital federal.

Os exemplos citados são apenas alguns, dentre vários, que ilustram não apenas a importância histórica do rock brasileiro nos anos 1980, mas também como, através dele, é possível compreender o país daquela época. E 1985 foi um ano decisivo, esperançoso, apesar da morte de Tancredo em abril, antes de assumir a presidência. Ainda assim, o vento da mudança continuou soprando, com o Congresso enfim aprovando eleições diretas para presidente e a convocação de uma Constituinte já em junho, que resultaria na atual Constituição Federal de 1988. Parecia que o futuro ia nascer feliz mesmo.

Dias de luta

Na música, o Rock In Rio foi mais do que um evento, mas um divisor de águas. Como bem conta o jornalista Ricardo Alexandre, em seu livro recém relançado, Dias de Luta – O Rock e o Brasil dos Anos 80, a partir dali começava a era de profissionalização do rock, mudando tudo. O RPM talvez seja o melhor símbolo disso. Foi outra banda que lançou seu primeiro disco naquele 1985, fazendo shows super produzidos, obtendo um sucesso impressionante, um fenômeno similar à Beatlemania (quanto à recepção do público, não a qualidade musical).

Entretanto, a esperança de 1985 não durou muito tempo. A debacle da economia era surreal. Em 1983, a inflação já era absurda, de 200% ao ano, mas em 1989 chegou a inimagináveis 1900% ao ano. A partir de 1986, vários planos econômicos foram feitos, todos fracassados, até piorando a situação, que só começaria a mudar de fato na década de 1990, com o Plano Real. Naturalmente, a esperança foi perdendo a cor e o viço, com a dúvida em relação ao futuro se instalando. E o rock retratou esse processo. Embora composta em 1978, Que País É Este?, da Legião Urbana, só foi gravada para o terceiro disco da banda, de 1987 (o primeiro também foi lançado em 1985). A justificativa de Renato Russo foi a de que “nunca foi gravada porque sempre havia a esperança de que algo iria realmente mudar no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é possível se fazer a mesma pergunta do título."

Cazuza concordava. Por “inveja criativa” da música da Legião, segundo ele próprio, compôs Brasil, que acabou se tornando um hino daquela época, cantando esta festa pobre que os homens armaram pra nos convencer a pagar sem ver toda essa droga que já vem malhada antes de nascermos. Entrou no seu terceiro disco solo (o primeiro, adivinhe quando foi lançado? Sim, 1985), cujo título é o mesmo da música Ideologia, sobre a qual esclareceu:

“Quando fiz ‘Ideologia’ nem sabia o que isso queria dizer, fui ver no dicionário. Lá estava escrito que indica correntes de pensamentos iguais e tal… A música, por sua vez, é muito pessimista, porque, na verdade, é a história da minha geração, a de 30 anos, que viveu o vazio todo. É meio amarga porque a gente achava que ia mudar o mundo mesmo e o Brasil está igual; bateu uma enorme frustração. Nos conceitos sobre sexo, comportamento, virou alguma coisa, mas deixamos muito pelo caminho. A gente batalhou tanto e agora? Onde chegamos? Nossa geração ficou em que pé?”

Viralizações por minuto

Quarenta anos depois, quase nada ficou de pé mesmo. Como o RPM. Antes de ter um segundo disco, já lançaram um “ao vivo”, algo à época considerado insensato em termos de uma carreira musical, mas que se compreende quando se sabe que o objetivo era financeiro, mais do que tudo. O disco realmente vendeu muito – é até hoje um dos mais vendidos da história –, mas o preço pago pela banda foi alto, se desfazendo pouco tempo depois para nunca mais recuperar a fama e a majestade. O RPM foi a primeira “viralização” da história, tornando-se tão famoso quanto esquecível, como um story de Instagram.

Por outro lado, algumas bandas permanecem até hoje, como os Paralamas do Sucesso, e certas músicas seguem tão atuais quanto antes, como a citada Que País É Este?. Outras, porém, são ainda mais atuais hoje, como Inútil, que cantava que não sabemos escolher presidente em uma época em que não os escolhíamos de fato, fazendo muito mais sentido hoje, quando comprovamos nas urnas que não sabemos mesmo.

E onde chegamos? Na economia, melhoramos muito, mas o temor de que isso não dure muito mais tempo voltou a nos assombrar. Na política, se Cazuza, em 1988, cantava que precisava de uma ideologia pra viver, hoje descobriria que todo mundo tem uma e que isso não é nada bom. Vivemos uma era em que mesmo que você não tenha uma ideologia será acusado de ter uma e julgado por isso. A tal da polarização desgasta, leva a extremismos e ao ponto em que estamos, um que a música Soldados, do primeiro disco da Legião Urbana, ajuda a expressar melhor: “Quem é o inimigo? Quem é você? Nos defendemos tanto, tanto, sem saber por que lutar”. No fim das contas, 40 anos depois, permanecem as perguntas, como a de Que País É Este?. E também a que consta em um dos versos da citada Proteção, da Plebe Rude: “Até quando o Brasil vai poder suportar?”.

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