Nonada é um espanto. Sempre que adentro Grande sertão: veredas — este mundo que aos desavisados parece intransponível — lembro da minha mãe: uma mulher magra, quase esquelética, a guiar-me pela mão numa infância que teima em me assombrar. Não, minha mãe jamais leu Guimarães Rosa. Ela jamais leu um livro, a não ser poucas palavras esculpidas por Deus numa Bíblia capenga. A mãe era quase analfabeta — uma lufada de vogais e consoantes a livrava da ignorância completa. Deus, às vezes, comete um milagre pela metade. Lia com o toque grosseiro da ponta dos dedos no delicado papel sagrado. Contava letras — feito um condenado a riscar os dias na parede da cela — em busca de algum sentido para a desgraçada vida que os dias arrastavam.
É simples: sempre que o cotidiano me obrigava a trabalhos práticos, eu fracassava. Passei parte da infância a fracassar — um lépido menino desastrado, daltônico, um amontoado de ossos a dançar diante do altar doméstico. A mãe, com sua boca de nenhum dente, ralhava na amorosa ignorância que o seu Deus lhe entregara: “Meu filho, você é um pranada”. A palavra ecoava pelos vãos obscenos da casa de madeira, acomodava-se no pó volumoso no porão, fazia companhia a ratos pançudos e esfomeados. Éramos um texto incompleto a transbordar adjetivos. Eu, um pranada. Um desengonçado pranada. Ou seja, não servia para as exigências daquele mundo bruto, ignorante, pragmático, perdido na roça. Ali, a sobrevivência jorrava no cabo da enxada, do facão, do machado. A ponta de um lápis não desenhava um mundo possível. Tudo que passava pelas minhas mãos virava fragmento, estilhaço, caco, destruição. Tinha o poder de transformar tudo em pó. Um pranada exemplar. Um Deus a cometer milagres pela metade.
Ao abrir Grande sertão, vislumbro as entranhas da mãe morta a me estender a mão do catre, um pedido involuntário de socorro: nonada. A palavra que abre o monumento de Diadorim e Riobaldo ilumina minha vida de maneira sinuosa: nonada transforma-se em pranada a cada nova leitura. O sertão de Rosa é o sertão de Z. — a mulher que me atirou à luz escura da vida. A mãe me relegou de herança um neologismo. Ela nunca soube o significado da palavra neologismo.
Mas por que lhes conto isso nesta estranha carta? Apenas para lhes dizer, de maneira um tanto romântica, que a literatura, ao contrário do que céticos e pragmáticos tentam nos convencer, não é inútil. Ela, a literatura, entrega-nos algo muito valioso, algo que ninguém nos rouba até o fim dos nossos dias: a possibilidade de construirmos a nossa história pessoal. Sua suposta inutilidade nos constrói.
O que lhes ofereço não é uma mera lista de livros ao acaso. É, no esforço do náufrago em busca da miserável ilha, uma oportunidade de entreabrir uma janela e, pela ínfima réstia de luz, vislumbrar mundos possíveis, vidas possíveis, para além de nosso cotidiano de tédio e tempestades. Não é fácil, mas tampouco impossível: atirem para o deserto o preconceito, a preguiça entranhada nos ossos e acolham nos braços o sofrimento da cadela Baleia — um dos capítulos mais impressionantes da literatura brasileira. Aquele sertão, aquela gente sofrida, aqueles retirantes de Graciliano (em Vidas secas) ou de Rachel de Queiroz (em O quinze), todos eles nos pertencem e, mesmo na imensidão de uma São Paulo infinita de concreto, ferro e desespero, toca-nos a pele. Somos nós a caminhar todos os dias em busca da sobrevivência, do sentido dos nossos passos. Somos todos Baleias agonizando bem longe do mar. Ou, quem sabe, o filho a retornar ao útero familiar — ao desamparo de mãos severas de um pai criado por Raduan Nassar em sua Lavoura arcaica. Estamos sempre retornando, de alguma maneira, a nós mesmos.
A juventude ainda agarra vossas carnes rígidas e os joga na balbúrdia da vida com ímpetos de imortalidade. Não, vocês sabem, somente os deuses são eternos. E onde eles estão? Em que nuvem se escondem? A mortalidade nos acompanha sem dó ou subserviência e dá graça a nossa vida. Sem ela, a mortalidade, a certeza das flores murchas do velório, que graça teria pedir um café com leite e um pão com manteiga na sebenta padaria da esquina? Estranho tudo isso... E o que tem isso a ver com estes livros? Quase tudo, quase nada (?). Machado de Assis — sim, o autor negro e genial, que muitos buscaram transformar em branco e genial, numa tentativa grosseira de eugenia literária — mostra-nos que a literatura nos livra de algum mal: “A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana”. Sim, acreditem, Memórias póstumas de Brás Cubas, com seus capítulos curtos, irônicos, incisivos, pode nos livrar de uma “velhice ridícula”.
(Um parêntese para lhes segredar algo que me apavora para além do ridículo da velhice: morrer em pé. Imaginem o patético: um homem magro e sem prumo, de repente, cai morto todo retorcido no meio da rua. Um louva-a-deus incinerado. Quando a morte chegar, que me abrace deitado no deck de madeira que construí especialmente para esperá-la.)
Mas da velhice, todos vocês ainda passam longe. É apenas uma pálida luz no túnel a percorrer. No entanto, é preciso estar sempre atento, ainda mais nestes tempos sombrios, de violências e impacientes, que nos envolvem com braços longos e largos. Ao publicar A hora da estrela, em 1977, pouco antes de morrer de câncer, Clarice Lispector escreve na apresentação: “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta”. E que estado de emergência e de calamidade nos observa o tempo todo? Basta uma espiada ao redor, ouvir o som ao redor, suspender a respiração e observar as milhares de Macabéas a transitar feito zumbis pelas ruas. Quem são elas, para onde vão? Ou o que nos dizem As meninas de Lygia Fagundes Telles, em torno de amores, impasses e violências, afundadas nos sombrios anos 1970, quando os militares sufocavam à força qualquer espasmo de liberdade? A literatura nos toca o tempo todo ao nos entregar perguntas para que enxerguemos além de nossas mãos, hoje tomadas por uma tela a brilhar uma luz intermitente. Notem como parecemos camelos cansados a percorrer um deserto com um celular nas patas. Nossa cabeça pende para baixo, na vã tentativa de mergulhar num mundo de ilusão. O mundo a nossa volta parece não nos importar. O mundo a nossa volta é o nosso mundo.
Assim nos dizem a delicadeza sagrada da poesia de Adélia Prado (“Procuro sol, porque sou bicho de corpo./ Sombra terei depois, a mais fria.”) e a divertida libertinagem de Hilda Hilst (“Eu perguntei se o pau era a cacetinha, mas esse homem disse que não, que era pau mesmo.”). A diversão desbragada de O caderno rosa de Lori Lamby (de Hilda) e a reflexão de Bagagem (de Adélia) completam um ciclo do divino ao profano, da santidade à libertinagem, do amor ao sexo. Da vida à morte — o centro da literatura.
Para finalizar esta carta um tanto irregular e repleta de silêncios, confesso que me causou certa angústia formular uma lista de apenas dez livros. Gostaria muito de encher páginas e páginas com indicações de autores, contos, romances, poesias, crônicas. Uma lista com falhas e, talvez, equívocos, mas feita com generosidade e otimismo. Sim, na loucura dos dias que jamais se desconectam, que atropelam o silêncio, que destroem a introspecção, acredito que as páginas de um livro podem iluminar mãos espalmadas na escuridão. Como tão bem disse William Faulkner: “O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor”. A minha maneira, entrego-lhes um fósforo para que o acendam várias vezes ao dia, ao longo da vida. Pela fresta da janela, sempre entrará uma réstia de luz. Nonada é um espanto. Basta descobri-la.
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