Quando a Netflix surpreende e oferta um dos raros clássicos do cinema nacional em seu catálogo isso é digno de aplausos. Filmado há 60 anos e lançado em 1965, São Paulo Sociedade Anônima acaba de ser disponibilizado para os assinantes do serviço de streaming, em seu preto e branco original. Merece ser visto ou revisto por ser uma das obras mais atemporais já produzidas no país.
O longa-metragem consagrou o então promissor cineasta Luiz Sérgio Person (1936-1976), que já havia feito algumas coisas no cinema, mas chegou para valer na cena cultural brasileira com esse trabalho. Ambientado na capital paulista da virada dos anos 50 para os 60, o roteiro foi escrito pelo próprio diretor no período em que foi estudar cinema na Itália. Ele voltou para o Brasil cheio de ideias e com uma linguagem muito mais refinada do que a de seus concorrentes do chamado Cinema Novo, que centravam suas atividades no Rio de Janeiro.
Walmor Chagas (1930-2013), que nunca havia estrelado um filme, foi convocado pelo amigo Person para viver o protagonista Carlos, um jovem adulto de 25 anos que precisa se encontrar na vida. Dividido entre três amores – a ardilosa Ana, a misteriosa Hilda e a “para casar” Luciana –, ele vive os romances enquanto dá seus primeiros passos profissionais trabalhando na Volkswagen. Também faz aula de inglês numa escola Yázigi no centro da cidade, local onde conhece Luciana, papel da bela Eva Wilma (1933-2021), que o faz entrar nos eixos.
Burnout à moda antiga
O problema é que aquela São Paulo pujante do início da década de 60 era tão cheia de oportunidades como enlouquecedora para um trabalhador buscando se estabelecer – nada tão diferente do que temos em 2024. Após ser demitido da Volks e começar um novo emprego numa fábrica de autopeças menor (porém ascendente), tendo de ser conivente com as falcatruas do patrão, Carlos sofre o que hoje chamaríamos de uma crise de burnout. Essa estafa se estende para o seio familiar, prejudicando a relação com Luciana e o filho do casal.
A crítica nacional é unânime em apontar que São Paulo Sociedade Anônima sobreviveu bem demais ao tempo. Seu tema central segue atual e seu ritmo, com constantes idas e vindas, não remete a algo rodado em 1965. Luiz Sérgio Person chegou a ser considerado o grande talento de sua geração, especialmente após filmar O Caso dos Irmãos Naves dois anos depois. Após uma temporada tentando arrumar financiamento nos Estados Unidos e de dirigir comédias comerciais das quais não se orgulhava, envolveu-se com o teatro e teve uma morte precoce: voltando de uma peça, foi vítima de um acidente automobilístico, às vésperas de completar 40 anos.
São Paulo Sociedade Anônima ficou com um legado de seu olhar sagaz e seu profundo conhecimento de cinema. Para o paulistano ou para conhece bem a cidade, ver cenas da época do Parque do Ibirapuera, da corrida de São Silvestre, de edifícios históricos do centro e das ruas coalhadas de fusquinhas é um tremendo barato. Mas isso entra apenas como um complemento de uma história avassaladora de um homem perturbado com os compromissos da vida adulta, numa selva de pedra tão fascinante quanto trituradora de almas.
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