O Brasil ainda vivia o rescaldo do AI-5, decretado em dezembro de 1968, quando Sérgio Sant’Anna publicou, em setembro do ano seguinte, O sobrevivente — pedra fundamental de uma trajetória literária que completa agora 50 anos. Sant’Anna nunca foi um escritor cuja literatura pudesse ser encapsulada em simples explicações ou resoluções e, talvez por isso, a melhor definição que lhe caiba seja metamórfico. Ao longo de sua carreira, trabalhou e ressignificou o seu próprio fazer literário, abandonando a definição de “conto” para transformá-la em algo menos restritivo como “narrativas” ou “formas breves”, tal qual fez o escritor argentino Ricardo Piglia. Transfigurou o romance e o teatro em um gênero simbiótico e esculpiu das experiências íntimas alguns de seus melhores textos, como os que compõem Anjo noturno, seu trabalho mais recente.
É nesse cenário que produz uma literatura capaz de vaguear os diversos mares, mas sem atracar em um porto seguro. E é dessa necessidade pelo novo e da impaciência frente ao marasmo que nasce a inquietação que não o faz parar de escrever e o permite ser lido e influenciar as novas gerações. Por sinal, um pequeno trecho de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, publicado no livro homônimo, foi o gatilho para que outro Sérgio, o Rodrigues, construísse um de seus melhores contos: A visita de João Gilberto aos Novos Baianos.
E como o mestre da bossa nova, Sérgio Sant’Anna é um ouvires da palavra ou, como disse certa vez Tom Jobim sobre o amigo de Juazeiro, é sucinto. Sua prosa é direita, econômica, como se cada frase fosse lapidada, escolhida a dedo. Não existem excessos: o texto se comporta como se soubesse de sua efemeridade e pronto. A sua literatura é, antes de tudo, recortes e fragmentos de vidas ficcionalizadas ou não. Por isso, não é de espantar que a lição de fotografia do protagonista do magistral As babas do Diabo, de Julio Cortázar — disciplina, educação estética e dedos firmes —, caia como uma luva para Sant'Anna.
Por outro lado, não é exagero algum afirmar que o autor é consciente da impossibilidade de retratar o homem “como ele é” e cujo resultado seria, nas palavras de Paul Klee, “algo vago e confuso, a ponto de se tornar incompreensível”. Prefere a remixagem da realidade pela arte, o que fica claro nos relatos d’O livro de Praga ou em narrativas como Madonna e Amor a Buda, ambos d’O Homem-mulher, Vibrações, d’O Conto zero e outras histórias, e os três textos que fecham a última seção de O voo da madrugada.
Como parte das comemorações pelas cinco décadas da vida literária de Sérgio Sant’Anna, a Companhia das Letras reedita neste mês Amazona, novela de 1986, que lhe rendeu o primeiro dos três prêmios Jabuti que recebeu, e que estava esgota havia muitos anos.
Na conversa a seguir, Sérgio Sant’Anna fala sobre sua trajetória como escritor e o futuro do Brasil.
Você me parece o oposto do Salinger. Enquanto ele deixou de publicar, você não só não parou de escrever como redefiniu a sua literatura. Que pulsão o leva a permanecer fiel à escrita ao longo de cinco décadas?
A pulsão que me leva a continuar a escrever é que a escrita é o meu ofício e sempre descubro coisas novas nele. Não gosto da mesmice.
Suas narrativas têm um senso muito forte de realidade. Mesmo quando reflete sobre a arte, você evita o escapismo, a literatura desprendida do real. Por que essa escolha?
O meu “real” é aquele transformado pela arte. Não me atrai o “realismo” como reprodução do real, e sim um realismo transformado ou realçado pela arte. Mas respeito o clássico em todas as artes, só que agora há um “novo realismo pop ou hiper”, uma percepção ampliada da realidade.
E uma das fontes dessa realidade é a sua própria memória, ainda que ficcionalizada. Como é a releitura de suas experiências e histórias pessoais?
À medida que fui ficando mais velho, me deu uma vontade imensa de recuperar experiências pessoais desde a infância. Como se pudesse vivê-las uma segunda vez e, às vezes, é até mais forte do que a primeira.
Ao mesmo tempo, também revisita a sua obra, recontando, apontando detalhes e revelando minúcias. O que o fascina ou lhe dá um senso de dever em repassar a sua própria literatura?
Sim, eu revisito, até com espontaneidade, a minha obra, porque ela é uma parte importante da minha existência. E, na revisitação, nunca é a mesma obra.
É interessante que seus contos, romances e peças não se prendem às questões formais, passeiam por gêneros, experimentações e até rejeitam a palavra conto — preferindo narrativa — ou criando o romance-teatro, como em A tragédia brasileira. Qual é o perigo de uma literatura sacralizada e atada aos padrões pré-estabelecidos?
Retificando um pouco a pergunta, a forma é muito importante para mim. Gosto muito da expressão de Ricardo Piglia: “formas breves”. E sim, passeio por diversos gêneros e experimentações. Prefiro a palavra “narrativa” à palavra “conto”, porque a primeira é mais abrangente, às vezes se aproximando até da poesia e da novela. Muitos de meus trabalhos são pequenas novelas, que escrevo até esgotar o tema. A pergunta é muito boa, porque posso apontar dois romances-teatro que escrevi: Um romance de geração e A tragédia brasileira, que é meu livro preferido. Ambos estão disponíveis pela Companhia das Letras. É muito interessante e provocador escrever um romance misturado com teatro.
Em muitos dos seus relatos — que beiram o desabafo —, você comenta sobre a angústia diante dos seus limites e possibilidades. Em Invocações, de O voo da madrugada, o personagem-contista apela para a intervenção da mãe morta. Em O conto fracassado, de Anjo noturno, você também se debruça sobre o desespero da incompletude. Depois de cinquenta anos de literatura, a página em branco ainda lhe causa desconforto?
A página em branco é até estimulante, porque a partir dela podemos escrever tudo, mas sempre esbarramos com dificuldades, impossibilidades, ou mesmo o desespero. Mas minha angústia diante disso era maior antes. Agora procuro escrever menos e também menos angustiadamente. Isso melhora a qualidade da vida. Tenho dado muito valor ao “não fazer nada”, só viver.
Os seus livros de contos são como discos, e parece haver sempre uma espécie de fio condutor, mesmo que subjetivo, unindo os relatos. Outro ponto comum é o conto de abertura como um comentário metalinguístico que debate o fazer literário. Esses são pontos propositais ou brotam de maneira orgânica?
O fio condutor é que sempre sou eu mesmo a escrever, mesmo nos relatos mais diversos. Mas o “eu” é uma entidade complexa, abriga “muitos”. As aberturas metalinguísticas — e elas não existem sempre — são uma forma de debate do fazer literário, um pequeno ensaio ficcional.
Nessas cinco décadas, você se coloca na contramão daquilo que se espera de um escritor e, entre outras coisas, esse caminho inverso se materializa na aposta pelas formas breves, na preferência pela simplicidade e pela narrativa direta. O que ainda resta de preconceito sobre o conto e a crônica depois de tantos anos?
É difícil para mim falar em preconceito contra o conto, porque adoro ler e escrever contos. E para mostrar a grandeza do gênero basta mencionar Borges, um dos maiores escritores de todos os tempos. Recentemente, comprei e li dois livros de contos que adorei: Manual da faxineira, de Lucia Berlin, e A vista de Castle Rock, de Alice Munro, esta última vencedora do Nobel só escrevendo contos. Entre os brasileiros, li recentemente dois ótimos livros: um de Sérgio Rodrigues, A visita de João Gilberto aos Novos Baianos, e também Não, não é bem isso, do Reginaldo Pujol Filho.
As relações, principalmente os jogos de sedução e suas complexidades, permeiam muito do que você escreveu. Hoje, entretanto, estamos cada vez mais afastados e desinteressados pelo outro. O que perdemos de nossa própria natureza, e também da arte, quando deixamos que nossas vidas sejam mediadas por aplicativos e redes sociais?
Acho que as redes sociais, apesar de muitas bobagens que se escrevem nelas, são importantes para troca de informações entre as pessoas, artística e politicamente. Eu participo do Facebook e fico contente com a união das pessoas contra a extrema direita que chegou ao poder no Brasil.
Em entrevista ao Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, você disse que seria melhor que as pessoas lessem mais e escrevessem menos. Que mal é esse que faz um escritor — das novas gerações —, supostamente, ler menos?
Com a quantidade de gente que escreve no Brasil, muitas vezes só em busca da fama, e o número irrisório de leitores, acho mesmo mais importante ampliar esse número. Ler bons livros enriquece uma existência.
Uma vez Décio Pignatari disse que os novos escritores se parecem todos. Penso que muitos dos autores das novas gerações ganharam projeção por meio do que chamamos de autoficção — algo que você já experimentava antes que fosse assim classificado. O que você tem percebido da literatura produzida pós-anos 2000?
Essa do Décio Pignatari, que admiro como poeta e ensaísta, foi uma declaração infeliz. Seria como eu dizer, o que não seria verdadeiro, que todos os concretistas são iguais. A literatura pós-2000 brasileira apresenta livros bons e ruins — o que acontece com qualquer literatura em todos os tempos.
Numa entrevista recente, você comentou que só há pouco tempo leu Guerra e paz e outros clássicos. O que o impedia de chegar a esses livros?
Não se pode ler todos os livros do mundo, nem os mais importantes. Queria há muito ler Guerra de paz, mas simplesmente aconteceu de eu só o ler agora. E como valeu a pena.
No conto O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, você comenta sobre uma crítica que recebeu por escrever sobre o ato de escrever como se estivesse sempre ensaiando. E depois fala sobre o Silvano Santiago afirmar que seus personagens são apenas personagens. Afinal, que mundo é esse em que vivem os seus personagens?
Sim, mas principalmente nesse conto O concerto de João Gilberto eu ia escrevendo como se estivesse ensaiando, pois escrevia à medida que vivia. E frequentava os ensaios de peças de meu amigo Antunes Filho, que me empolgavam e ensinavam sobre a arte. Sim, meus personagens são personagens, é óbvio. Mas não concordo com você. Meus personagens, felizmente, não são um espelho do real. Diria que são uma outra dimensão da realidade.
Como disse antes, suas narrativas seguem por diversos caminhos, muitas vezes passando da ficção à prosa ensaística, dando um novo fôlego à história, uma espécie de sobrevida. Quando uma história chega mesmo ao fim ou se esgota?
A gente sente quando uma história chega ao fim: é quando não há mais nada a dizer nela. Mas, às vezes, a gente ultrapassa esse final e é obrigado a deletar, como se diz agora.
Sei que seu artista favorito é o Duchamp. Eu vejo alguns paralelos entre a sua literatura e as artes visuais — tanto na forma como na escolha do tema. Como a arte influenciou e influencia as suas histórias?
Sim, é notório que minha obra guarda um grande parentesco com as artes plásticas (ou artes, em geral), porque quando uma pintura, ou escultura, ou uma performance, mexe comigo, fico imediatamente tentado a escrever. Às vezes são as próprias obras de arte que me levam diretamente a uma narrativa, como em Contemplando as meninas de Balthus e A mulher nua, ambas do livro O voo da madrugada. Duchamp é de fato meu artista favorito, embora aprecie muitos outros. Considero meu Um crime delicado um romance duchampiano, assim como Junk Box,que é também dadaísta. Seu editor e artista gráfico Sebastião Nunes colaborou muito para que isso acontecesse.
A viagem que fez, ainda menino, a Londres percorre alguns dos seus textos, seja em um tom memorialista ou em um arranjo ficcional. Ela sempre soa, ao menos para mim, como uma ruptura da inocência. O que essa viagem guarda de tão especial?
A temporada em Londres, aos 12, 13 anos de idade, foi a viagem mais importante da minha vida, inclusive viajei com minha família por vários lugares da Europa, numa idade em que se aprende muito. Meu pai era um homem muito bacana, que nos mostrava tudo. Apenas para citar um exemplo, ele nos levou em Londres ao túmulo de Karl Marx. E logo nos explicava quem era e o que era Marx.
Você disse à revista Cult: “O papel social da arte é colocar em cena os dramas da existência e os dramas sociais”. Vivemos um tempo de marginalização da cultural em geral, da negação da ciência e da história. O que cabe ao artista diante desse cenário distópico?
Os escritores ainda não têm, no meu entender, o distanciamento para escrever um romance sobre a época trágica e obscurantista que vivemos atualmente no Brasil governado pela extrema direita, mas isso ainda virá, com certeza. Parece-me que Ricardo Lísias está escrevendo livros em cima dos fatos politicamente inaceitáveis. Ainda não os li, mas pretendo ler. Pessoalmente, agora em setembro, mês em que completo 50 anos de literatura, a Companhia das Letras estará relançando meu romance Amazona, lançado em 1986 pela Nova Fronteira e esgotado. Creio que tem tudo a ver com o Brasil atual.
Esse cerceamento às artes de uma forma geral me faz pensar naquilo que viveu durante o International Writing Program, em Iowa, e que pode estar com os dias contados tanto nos EUA como aqui. Como esse intercâmbio se materializou na sua obra — para além do relato Vibrações?
O cerceamento às artes no Brasil de agora é uma vergonha. Temos de resistir com todas as forças a isso. Quando estive no International, em 1970/71, em Iowa City, EUA, aquele país vivia uma época riquíssima culturalmente, do rock a todas as artes. Outro dia vi no Canal Curta à apresentação elétrica e genial de Jimi Hendrix no Festival de Woodstock. Como me emocionou e me deu saudade, embora eu não tenha estado em Woodstock. Mas, simultaneamente, havia a luta dos estudantes, artistas e muita gente mais contra a guerra do Vietnã. No Brasil, estávamos em plena ditadura, mas, paradoxalmente, as artes viviam um momento de grande criatividade, como o mundo todo, em geral. Temos de fazer a mesma coisa agora, com todos os meios de que dispormos.
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