Quem já passou por algum luto irá se reconhecer no aclamado seriado O Urso (The Bear), acompanhando Carmen "Carmy" Berzatto, um jovem chef de alta gastronomia que retorna a sua cidade natal, Chicago, para administrar a lanchonete da família em razão da morte de seu irmão, Michael.
Tudo em O Urso reflete o que se passa no universo interior de um enlutado. Não apenas de Carmy, mas de sua irmã, sua mãe, seu primo, sua família e demais funcionários da lanchonete, que amavam Michael. Cada temporada retrata alguma etapa desse processo. Até aqui foram três, mas haverá ao menos mais uma. A terceira foi recentemente disponibilizada no Disney+. Antes de continuar, um aviso: no que segue haverá alguns spoilers.
Na primeira, mergulhamos no caos deixado por Michael. A lanchonete é um reflexo também da desordem interior dos personagens, um lugar onde a dor e a confusão são palpáveis e todas as tentativas de manter as coisas como eram fracassam. A temporada termina com a esperança de uma reconstrução, que é o símbolo maior da segunda, com a transformação da lanchonete em um restaurante novo, refletindo também o processo de mudança ou reconstrução da vida de vários dos personagens.
Na terceira, enquanto alguns personagens seguem melhorando, se reconstruindo, Carmy retrocedeu, algo comum na vivência do luto, ficando imerso em si, afastando-se de todos e tentando fazer tudo do seu jeito, focando em apenas uma coisa: conquistar uma estrela Michelin, maior honraria para um restaurante, sacrificando tudo o mais para tanto.
A série tem um ritmo irregular, com episódios curtos e alguns longos, com vários deixando o espectador com os nervos à flor da pele, sem conseguir respirar em meio à gritaria dos personagens, enquanto outros parecem sem propósito, até arrastados e tediosos. Mas o que poderia ser um defeito é, na realidade, uma das melhores qualidades da obra. Porque o processo do luto é assim, irregular, não linear, com momentos de imenso sentido e outros de completo vazio e angústia.
A “montanha russa” emocional que o luto cria arrasta o enlutado, que pouco pode fazer e entender do processo, principalmente nos seus primeiros momentos, que podem durar alguns anos. É o período do chamado “luto duro”, retratado na série. Quem vê de fora nem sempre percebe esse turbilhão interior, muito menos o compreende, confundindo o luto com depressão ou até bipolaridade. É aí que o seriado pode ajudar quem convive com algum enlutado e nunca passou por isso. A obra aproxima o espectador desta realidade atormentada, permitindo não exatamente entender o que se passa, mas aceitar a impotência e descobrir na compaixão e paciência a virtude da esperança.
O santinho de Jesus Bom Pastor
Alguns episódios ganham destaque neste sentido, como o primeiro da terceira temporada, praticamente sem falas, passando-se inteiramente no mundo interior de Carmy, com suas lembranças, dores, sonhos. A trilha sonora merece menção, pois as músicas marcam o ritmo das cenas em todos os episódios, seja contribuindo para a angústia nas mais nervosas, com a falação interminável dos personagens, sempre em volume mais alto do que o necessário, seja aliviando a tensão nas mais introspectivas, conduzindo contemplações. A própria cidade de Chicago faz par com as músicas, criando o ambiente afetivo vivido pelos personagens.
No coração do processo do luto de Carmy está sua família. O urso é símbolo disso, aparecendo em uma das primeiras cenas. Carmy caminha sobre uma ponte e, no meio dela, há uma jaula aberta, com um urso saindo dela. O atravessar da ponte exigirá confrontar o urso em algum momento. Na segunda temporada, o primoroso episódio da ceia de natal na casa da mãe de Carmy é um dos mais significativos desse enfrentamento que terá de acontecer em algum momento. Ali se revela o “urso” desenjaulado quando a tensão constante entre os familiares, sufocante para o espectador, explode transbordando ressentimentos entre todos.
Isso se desenvolve melhor na terceira temporada, quando Jamie Lee Curtis, que fez participação especial interpretando a mãe de Carmy naquele episódio, retorna em dois outros, com atuação exuberante, sendo que naquele em que acompanha sua filha, Natalie, ao hospital para dar à luz, o ressentimento mútuo começa a ser purgado pelo amor resiliente, que só pode renascer por meio do perdão.
Com isso, outro símbolo presente na obra, aparecendo em diversos episódios com personagens e momentos diferentes, sempre de forma significativa, vai desvelando seu sentido: um “santinho” contendo a imagem de Jesus Bom Pastor, pintada por Kastner, provavelmente sendo do velório ou missa de sétimo dia de Michael. Outros símbolos e referências católicas estão no seriado, mas nenhum de forma reiterada como este e que dispensa explicação.
Enfim, ao leitor que costuma sofrer garimpando algo de bom entre a infinidade de seriados disponíveis nos serviços de streaming, O Urso é uma aposta certa e mais do que recomendável. Talvez seja, hoje, a melhor opção.
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