Som da Liberdade, que após uma temporada exclusiva nos cinemas já pode ser alugado nos streamings da AppleTV, Prime Video, YouTube, Google e Claro TV, revela uma realidade que muitos preferem ignorar: o alarmante crescimento do tráfico sexual de crianças e a preocupante influência da pornografia na familiaridade de homens simples (não apenas milionários com uma ampla rede de contatos) com a indústria da pedofilia. O filme aborda esse tema ao documentar o resgate de várias vítimas, comandado por Tim Ballard, um verdadeiro herói moderno. Impulsionado por sua fé em Deus e pelo valor da família, Ballard estava disposto a arriscar sua própria vida para libertar essas crianças.
Na minha opinião, o filme é digno de ser assistido, pois enriquece nosso imaginário ao retratar a realidade desse horror. Apresenta cenas de grande beleza que flertam com elementos artísticos, ao mesmo tempo em que tem um impacto social significativo, trazendo à tona a conscientização de que a pedofilia não é um problema distante, mas algo que cresce em nossa sociedade. Esse horror precisa ser lembrado constantemente, já que muitas pessoas preferem ignorar o problema. Como exemplo, no passado, escrevi sobre os caminhos intelectuais que os militantes percorrem em relação à legalização da pedofilia e nem sempre fui levada a sério.
Freud desempenhou um papel crucial neste debate ao defender abertamente que a sexualidade existe na infância de forma maior do que a esperada. Não que ele tivesse perversão. Freud considerou nas crianças um interesse predominantemente cognitivo em relação ao sexo entre duas pessoas, excluindo o interesse genuíno, a menos em casos de desvios comportamentais. No entendimento freudiano, inclusive, muitos sintomas de histeria são causados por traumas sexuais infantis. No entanto, a ênfase na sexualidade infantil abre espaço para a normalização do onanismo e, quando os pais reprimem a masturbação dos filhos, começam a ser interpretados como se estivessem restringindo a liberdade sexual das crianças, abrindo espaço para uma militância quanto aos supostos “direitos sexuais infantis”.
Para os ativistas pedófilos, a premissa é que, se as crianças possuem desejos, podem consentir em satisfazê-los, o que impulsiona a perigosa ideia de que meninos e meninas consentem em ser tocados. No entanto, é importante ressaltar que, em casos envolvendo crianças, o consentimento não deriva da consciência, mas da manipulação. É algo que os ativistas pedófilos nunca admitiriam. Pelo contrário, eles utilizam diversas estratégias para tentar combater a “patologização” e a criminalização da pedofilia. Listo alguns exemplos.
- Usar uma terminologia de valor neutro ou romântico (as principais revoluções começam com a linguagem), substituindo termos carregados como pedofilia por expressões como pedoafetividade, amor grego, amor imberbe e substituindo o rútilo de pedófilo por boy-lover ou child-lover.
- Incorporar representações de nudez infantil na arte, como exemplificado na polêmica exposição Queermuseu.
- Propor uma redefinição do termo "abuso sexual infantil" para "intimidade intergeracional".
- Fomentar a ideia de que crianças podem consentir sexualmente com adultos.
- Desafiar a noção de que a relação sexual entre criança e adulto causa dano psicológico.
- Apoiar pesquisas autodenominadas científicas acerca da sexualidade e consentimento infantil e acusar seus opositores de tendências políticas e comprometimento moral.
- Militar pela desclassificação da pedofilia como doença mental ou crime.
O próprio Som da Liberdade apresenta certos pedófilos como indivíduos de comportamento folião e despreocupado, que não intelectualizam suas imoralidades. No entanto, o primeiro a ser encarcerado tem uma aparência geek e disposição intelectual, chegando a escrever um livro com o intuito de racionalizar seus desejos. Esse pedófilo defende que todos possuem impulsos semelhantes, mas poucos têm a coragem de expressa-los. Há uma sugestão da existência de um ativismo pedófilo e aqueles que questionam essa realidade poderiam começar a pesquisar sobre organizações e grupos como NAMBLA (North American Man/Boy Love Association), Vereniging Martijn, Associação Pedófila Dinamarquesa, IPCE (International Pedophile and Child Emancipation), K13 (Associação Krumme 13), Boychat, Free Spirits e Forum Newgon. A realidade é dura não só na prática, como na mente humana.
Falta de profundidade
Entretanto, assim como a esquerda se equivoca ao eleger o filme Barbie como o ápice da sátira intelectualizada, a direita também enfrenta o risco de politizar a arte e confundir dramas interessantes, porém simplistas, com grandes marcos na história do cinema. Portanto, embora Som da Liberdade seja inegavelmente envolvente, deixa a desejar como obra de arte.
As obras de arte servem para nos libertar das abstrações e nos lançar à concretude da realidade, encontrando densidade onde antes víamos generalizações. Elas não apenas devem retratar circunstâncias particulares envolventes, mas também dramas universais com os quais todos possam se identificar. Se o filme fosse uma verdadeira obra de arte, os personagens deveriam permitir que o espectador se reconhecesse ou visse o que lhe falta nas qualidades e defeitos de cada um deles.
Você já se sentiu alguma vez oprimido por uma força opressiva contra a qual não sabia como lutar, como Roccio? Ou já experimentou o desejo de explorar alguém, negligenciando a subjetividade da pessoa, como os abusadores, mesmo em circunstâncias alheias ao sexo? O que interessa é mais o drama universal do que a circunstância particular. Por exemplo: você já passou por uma forma de violência que não conseguia compreender totalmente devido à sua imaturidade, como Miguel? Ou sempre teve consciência das opressões que enfrentou? Você já aspirou a ser um herói, ou sentiu medo de confrontar o sistema, como Tim, por covardia? Apoiaria seu cônjuge se ele desistisse do emprego para se tornar um herói, como Katherine, ou temeria os desafios financeiros, a carência afetiva e a possibilidade de perda, como a possível morte do marido? Quem você seria nesta narrativa?
As experiências negativas das crianças careceram de profundidade na narrativa. Não por qualquer falha do roteiro, como sugerem os críticos especializados. Pelo contrário, isso pode ter sido uma escolha consciente para refletir a compreensão rasa das próprias crianças diante do horror que testemunharam. Abusos sexuais geram emoções tão complexas como medo, vergonha e confusão mental, que a ficha demora para cair. Às vezes, a vítima se retrai, sem desespero como Miguel, porque sua mente recorre a mecanismos de defesa como negação, repressão e sublimação. O choque é tão letal que a mente hesita em liberar lágrimas na quantidade que esperaríamos. Sentimo-nos emocionalmente paralisados, sufocando nossos sentimentos. O esgotamento emocional nos impede de expressar emoções e, em situações de dor crônica ou prolongada, até nos adaptamos à dor. No entanto, a exploração dos dramas vividos pelos adultos deveria ser mais profunda, começando pela figura paterna.
O pai de Roccio e Miguel é retratado apenas como uma vítima do destino, que não suporta a visão dos quartos vazios de seus filhos, a incerteza de suas integridades físicas e mentais. No entanto, anteriormente, esse mesmo pai permitiu que as crianças fizessem um teste de modelo, sugerido por uma desconhecida e deixou-as sozinhas num ambiente suspeito. Por quê? O filme não explora se sua ação foi motivada por vaidade, busca por lucro às custas dos filhos ou um genuíno apoio à vocação artística de sua filha, cujo canto teria maior oportunidade na indústria do entretenimento. Seria ele negligente, oportunista ou apenas ingênuo? O que fica evidente é que os eventos trágicos não teriam ocorrido se ele não tivesse concordado em deixar as crianças sozinhas. No entanto, a negligência do pai e sua consciência culpada não são exploradas. A reação dos parentes das outras crianças também permanece em questão.
Todo herói é vulnerável
O filme também deixa de aprofundar a biografia e os dramas psicológicos mais complexos do protagonista, o policial Tim. Na vida real, os heróis não são seres angelicais desprovidos de ambiguidades morais e conflitos psicológicos, nem possuem um conhecimento infalível sobre o caminho que devem percorrer, como se este fosse revelado do Céu. Pelo contrário, eles carregam questões latentes, como ilustrado pelo personagem Travis em Taxi Driver. O drama universal apresentado no filme de Martin Scorsese é o da busca pela justiça em meio a um ambiente injusto, onde o protagonista se sente deslocado e acaba cometendo erros graves, agindo de maneira às vezes insana. Por um lado, ele está correto ao reconhecer que não podemos ignorar os problemas da sociedade, no entanto, também faz parte do mundo decaído. Às vezes, inconscientemente, Travis emula a maldade do meio, demonstrando um desconhecimento sobre o verdadeiro cultivo da virtude. Ele só encontra as respostas para o problema da justiça à medida que vive sua vida, resgatando uma menor de idade da prostituição, o que o faz passar da revolta abstrata para a ação real. Em contrapartida, no filme de Alejandro Monteverde, Tim é apresentado como um herói perfeito, sempre com respostas prontas e sem mostrar fraquezas emocionais, ao contrário, por exemplo, do próprio Cristo, que demonstrou vulnerabilidade na Cruz.
Som da Liberdade deixa a impressão de que a esposa do protagonista o apoiou de maneira significativa, no entanto, essa dimensão do drama não é bem explorada. Será que ela nunca experimentou o medo de perder o marido em planos perigosos? Será que nunca sentiu a ausência dele em casa, compartilhando momentos com os filhos e oferecendo atenção? Mesmo as esposas mais compreensivas enfrentam inseguranças e receios, como qualquer ser humano, e as misérias humanas nos permitem a identificação com os personagens. Heróis não nascem prontos; eles forjam o caminho da justiça enfrentando ambiguidades e desafios psicológicos; mais como Travis, menos como Tim.
*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia