Judeus, cristãos, nazistas, tiktokers, Hollywood, quem é woke, quem odeia a agenda woke e o rapper Kanye West. Nos 22 minutos do episódio que abre a 26ª temporada de South Park, dá tempo de enfileirar todos esses alvos e fazer troça de uma maneira que só o desenho criado por Matt Stone e Trey Parker em 1997 é capaz. No Brasil, é o Paramount+ quem exibe as aventuras de Stan, Kyle, Cartman e Kenny, mas o site oficial southparkstudios.com também oferece gratuitamente todo o conteúdo que já foi ar, até mesmo com dublagem em português.
A premissa desse episódio inaugural é que o garoto Stan está enciumado com a nova amizade entre seu eterno parceiro Kyle, de origem judaica, com Tolkien, o negro da escola. Cabe ao encapetado Cartman minar esse nascente laço, tentando colocar na cabeça de Tolken que os judeus só querem tirar proveito de seu povo, como já o fazem na indústria do cinema. Os argumentos são tirados da última vez que Kanye West surtou e atacou “os judeus que mandam em Hollywood”. Não por acaso, Cartman conta com a ajuda de um cupido imaginário chamado Ye (apelido do rapper), que dá flechadas antissemitas na molecada.
Kanye West é o artista que mais pegou pilha com South Park ao longo desses 26 anos do desenho animado. Já revidou as zoeiras em pelo menos três canções com versos raivosos. E vai ter de escrever mais algumas, pois Matt Stone e Trey Parker não conhecem limites. Crias do Colorado, um dos estados mais progressistas dos Estados Unidos, eles se declaram Republicanos, para o horror de 99% da indústria do entretenimento, que é orgulhosamente progressista. Esse posicionamento político permite que a dupla caçoe do culto à maconha, que foi legalizada primeiramente no Colorado. Num dos filmes da marca lançado em 2022, as plantações da erva que hoje dominam a cidade de South Park (até o pai de Stan virou um fazendeiro dedicado ao cultivo) causaram desabastecimento de água nas casas dos munícipes devido ao uso desenfreado para a irrigação.
Casa Bonita
Muitos não se conformam em ver um produto tão subversivo no ar, mexendo com gente poderosa e usando de estereótipos que hoje são combatidos mesmo quando o intuito final é somente fazer piada. Em 2021, Stone e Parker assinaram um novo contrato multimilionário com a Paramount para novas temporadas e nada menos do que 14 filmes do universo South Park. O único porém é que esses filmes estão consumindo boa parte do tempo dos criadores, o que tem deixado as temporadas mais curtas. Tanto no ano passado como neste, apenas seis episódios foram confeccionados. Mas isso só deixa a acidez mais concentrada. Em outro episódio lançado neste semestre, a implicância é com essa gente que não quer mais usar papel higiênico após defecar e fica fazendo defesas entusiasmadas dos jatos de água (se eles soubessem que no Brasil há um tal de Felipe Neto...).
Stone e Parker viveram um 2022 intenso e repleto de emoções. Como South Park estava completando um quarto de século, eles reuniram 20 mil fãs em dois espetáculos no mítico Red Rocks Amphitheatre, uma joia do Colorado, para tocar músicas que se tornaram célebres no desenho e em outros projetos encabeçados por eles. As bandas Primus (autora do tema de abertura de South Park), Ween e os músicos remanescentes do Rush completaram a festa, que teve até o governador do estado entregando títulos de cidadãos honorários para os dois artistas. Além disso, a dupla resolveu comprar e recauchutar o restaurante mexicano Casa Bonita, um ponto turístico de Denver, que figurou num dos episódios clássicos da animação. Com um lago no meio do salão, em que mergulhadores dão saltos ornamentais enquanto a criançada enche a pança de tacos e sopapillas, o local estava decadente e com a estrutura toda podre quando passou para os novos donos. Alguns milhões de dólares em reformas depois, a Casa Bonita reabriu para o público na capital do Colorado neste mês, com uma lista de espera quilométrica.
O restaurante reformado é só mais um feito admirável desses improváveis heróis da resistência politicamente incorreta. Já na casa dos 50 anos, Stone e Parker não parecem interessados em diminuir o ritmo de South Park para focar mais na gerência do novo negócio. Na verdade, nos últimos tempos, o desenho tem conquistado mais liberdade, totalmente na contramão dos dias em que vivemos. Os episódios são finalizados cada vez mais próximos da data de entrega, o que permite aos realizadores zombarem de temas bem quentes. No segundo da nova leva, a morte da rainha Elizabeth entrou na mira, com o Príncipe Harry e sua esposa Meghan Markle recebendo a maior parte dos chistes por formarem um casal chorão e patético que clama por privacidade mas vive de exposição. É como se South Park possuísse um escudo anti-cancelamento que permitisse que todas as angústias contemporâneas fossem vocalizadas sem sofrimento de represálias. Ou seja, um oásis na programação televisiva, que todos deveriam aproveitar.
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