O título do primeiro livro de contos de Tiago Amorim, Eu Vi um Unicórnio Morto (Confraria do Vento, 2021), chama a atenção e o leitor curioso talvez se pergunte: por que esse animal mitológico? Qual a razão de o terem matado? E o que a testemunha vai fazer com essa informação? Amorim não responde definitivamente a nenhuma dessas perguntas, mas, mesmo assim, deixa o leitor saciado.
Trata-se da obra ficcional de estreia do autor, que já havia publicado três livros de ensaios: Abertura da Alma, Por que não Somos Felizes? e O Coração do Mundo. Aqui, temos 12 contos que, como diz o poeta João Filho na orelha, “parecem não ter conexão entre si”, mas, como também explica o poeta a seguir, têm. O unicórnio é a dimensão transcendente da vida.
“Transcendente” ou, ao menos, imaginativa, sem a qual a vida se degenera em rotina, espiral e vertigem. Os relacionamentos se tornam acordos; a profissão, uma obrigação; a morte, um desejado termo. Os personagens do livro não sabem, mas mataram culposamente o unicórnio. O autor é quem os acusa.
Amorim começa seu primeiro conto explorando o porquê de nem todas as pessoas se sentirem bem dentro de casa. É o melhor do livro, Dia 42. O conto é um relato da rotina durante a pandemia, mas que também poderia ser de algum dia de 2024, afinal, muitos ainda vivem de modo similar. A convivência do casal se exaspera, até cada um mergulhar dentro de si. O sofá, o celular, ou a escrita servem de instrumento para tal.
A esposa vê o marido, aos poucos, tornar-se um homem mecanizado e coloca isso no papel – ela é uma boa leitora, que decide se arriscar na escrita. Ela observa uma “grande metade”, que vive de pescoço dobrado e sua única atividade é aquela sensível ao toque da tela do celular. Apenas reconhece que ele está ali, certificando-se de sua existência pelo barulho da TV. Até isso, consequentemente, entediar.
O desinteresse é tanto que ele vai desaparecendo aos poucos. Misturado ao ambiente, não tem mais vida e a morte, pelo vírus ou não, serviria, no máximo, como um interessante material para escrita. É a frieza que se exacerba das coisas não cultivadas, do amor não observado, e que penaliza pelo distanciamento que se cria em relações que teriam tudo para ser duradouras.
Já Revoluções é o conto que, assim mesmo, no plural, indica duas delas. A primeira é aquela desejada pela esquerda, no caso, a da primeira eleição de Lula, em 2002. A outra é a dos próprios personagens, que, de um relacionamento poliafetivo, se transformam em pais e mães de família, sem mesmo saberem se realmente desejavam isso. O revolucionário, de repente, mostra-se tão desprovido de sentido.
Em Simbolismo Natural, o conto de linguagem mais provocativa, a narradora eleva a sexualidade ao mote da própria existência. O vício em pornografia é glamourizado e os personagens, filhos da revolução sexual, mostram claramente como isso se trata tão somente de um movimento que desesperadamente quer chocar e gritar contra um inimigo invisível. A máxima satisfação se torna, repentinamente, uma tristeza arrebatadora.
Nuances do fracasso
No prefácio, o escritor Alexandre Soares da Silva observa que Amorim explora “todas as vertentes e nuances do fracasso”. Há nos personagens a sensação aguda da falta. A vida ofereceu muita coisa, mas, por algum motivo, nem chegou perto de ser suficiente. A “realização pessoal” foi descartada e substituída por necessidades mais urgentes.
Em Fim, é um cachorro que tenta preencher a distância que separa o casal. É o conto mais curto do livro, o que não significa que o autor o deixou menos expressivo. Já em Oitava Arte, o revisor de textos recorre ao “deus da distração” para preencher sua rotina profissional. Ele mata o trabalho até matar o unicórnio e, também, a si mesmo, enquanto fuma um cigarro atrás do outro.
Algumas faltas são escancaradas, enquanto outras são sufocadas, como em Nossa Mãe. É o conto mais comovente, em que nos aproximamos de um segredo traumático de uma família. A narradora aposta na “marcha do esquecimento” como solução para o que eles estão passando.
O sentido da vida
O livro termina com Deus Complica a Gente. Marcelino dos Reis é o mais simples dos personagens da obra. É a ele que Ele, ou apenas o subconsciente, resolveu mandar uma mensagem. O seu melhor amigo, João Francisco, vai morrer no mesmo dia e Marcelino precisa fazer alguma coisa.
Ao final da leitura, notamos que as manifestações da dimensão transcendente da vida são inexatas. É diferente, fundamentalmente, da ciência que o marido de Dia 42 acredita, da revolução que os personagens de Revoluções desejam, ou das paixões arrebatadoras de outros contos.
Mas o unicórnio resiste como a única forma de inventar a própria vida. Ou seja, tirá-la desse chão áspero e dar algum sentido mais elevado, para não corrermos o risco de afundar. É preciso acreditar em unicórnios para ficarmos de pé.