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Era a década de 1960. Nelson Rodrigues tinha 54 anos quando escreveu sua primeira "memória", ainda em uma coluna de jornal. "Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife, Pernambuco". Este fato objetivo, sem qualquer carga emocional, é também o que inicia a obra em que o dramaturgo acaba por se expor completamente. Memórias: A Menina sem Estrela (Nova Fronteira, 2021) é um livro em que Rodrigues eleva o gênero da crônica, adicionando um toque memorialístico. E ainda há a possibilidade do leitor se surpreender descobrindo de fato quem era o escritor, para além dos estereótipos.
Ao bater as primeiras teclas em sua máquina datilográfica para falar de si, de suspensório e fumando cigarros compulsivamente, Nelson Rodrigues já era um autor respeitado. A peça Vestido de Noiva estava consagrada pela crítica, e o romance de estreia, Meu Destino É Pecar, publicado. Isso sem contar as crônicas em jornais, abordando desde futebol até política.
À época, o dramaturgo escrevia para O Globo, mas nesses moldes, sobre temas aleatórios. Falar sobre a própria história ainda não estava em pauta. Foi no jornal O Correio da Manhã que Nelson Rodrigues encontrou espaço para tal. E, depois do absoluto sucesso da coluna, o jornal de Roberto Marinho quis o produto, pedindo para que o autor escrevesse ali suas memórias. Assim ele fez, passando a intitular a seção como Confissões.
As colunas deram origem ao livro, organizado pelo biógrafo Ruy Castro e composto de 80 capítulos, todos com igual importância biográfica. Contam desde a infância no Recife, passando pela vida adulta no Rio de Janeiro, e terminando com a morte do pai, o jornalista Mário Rodrigues. O jornalista Otto Lara Resende (1922-1992) chegou a afirmar que o capítulo 10, sobre o drama de Daniela, filha cega de Nelson, é "uma das mais belas páginas da língua portuguesa".
O reacionário
A conclusão que Memórias traz é a de que a aparência de Nelson Rodrigues, ávido por tocar nos dramas e segredos humanos, não necessariamente condizia com sua essência. Se um leitor iniciante se aventurasse por uma das obras já consagradas do autor de A Vida como Ela É, provavelmente confirmaria a imagem feita pelo senso comum sobre ele. A série de contos, talvez uma das mais famosas do escritor, virou minissérie de TV, produzida pela Rede Globo e transmitida dentro do Fantástico nos anos 1990. Maitê Proença, Guilherme Fontes, Cláudia Abreu e José Mayer interpretavam as cenas de adultério, desejo e lascívia, todas criadas pela mente do dramaturgo “depravado”.
E é aí que Memórias vem contrariar o estereótipo. O mesmo leitor se surpreenderia com frases como: “E me deu tédio brutal da humana pornografia", “o biquíni é o meu cotidiano espanto”, “só o ser amado tem o direito de olhar um simples decote” e “esse umbigo revelado era pior do que a nudez absoluta”. Nessas confissões, Nelson Rodrigues se revelaria como ele é: um homem conservador, ou nas palavras dele, um reacionário.
Mas ser um homem com valores morais claros não significa que Nelson Rodrigues era sisudo. Ele gostava de uma boa mesa e, mesmo sendo um “sóbrio vocacional”, frequentava os bares cariocas. Com sua habilidade única para escrever frases, era capaz de arrancar risos do leitor com, por exemplo, “trato minha úlcera a pires de leite como se ela fosse uma gata de luxo”.
Já a madeleine, doce que desperta a memória involuntária em Em Busca do Tempo Perdido, obra também memorialística de Marcel Proust, é substituída pelos brasileiríssimos caju e pitanga. Também engraçado, e definidor da vocação de Nelson, é o seu primeiro concurso de textos no colégio. Sem falar em outras frases que nos fazem refletir, por mais tempo do que o necessário, como “jamais encontrei uma mulher gaga”.
Quando a morbidez do dramaturgo se une ao sarcasmo, ele se sai com “não há ninguém mais narcisista do que o defunto”. Sem falar na sagaz resposta, quando perguntado qual seria a sua última frase no leito de morte, “que boa besta é o Carlos Marx!”.
Pecados sem filtros
Nelson Rodrigues não cai nas armadilhas de uma autobiografia, como deixá-la insossa ou condescendente, nem omite os episódios decisivos de sua vida: “Toda semana, alguém faz o próprio retrato, a convite de Manchete. Seria fascinante que um dos convidados declarasse à queima-roupa, alçando a fronte: ‘Eu sou um pulha’”. Ele não se declara um “pulha”, mas confessa muitos dos seus, e dos nossos, pecados.
A morte é uma das obsessões do autor e é convivendo com ela que ele se despe de todas as mentiras que conta para si mesmo. O assassinato de seu irmão Roberto e a estada no Sanatório de Campos do Jordão são alguns desses momentos. Como em um jogo de luz e sombra, é da sua impotência diante do inexorável, da tristeza aguda do luto, e da revolta diante disso, que ele conhece sua própria alma.
Nem todas as confissões são pesadas e algumas são de uma beleza arrebatadora. Como o pesar de não ter demonstrado amor suficiente pelo irmão, adiando "um sorriso, um olhar, uma carícia", por "pudor de ser meigo, vergonha de ser piegas". Também há o amor genuíno do filho por um pai, ao fazer o gesto que resumiria esta relação, na última frase do livro.
Memórias: A Menina sem Estrela é um livro que respeita o leitor, com sinceridade total e entrega desmedida à palavra. “Nós sabemos que o sujeito mais livre do mundo é o leitor”, ele diz, em uma crônica. De fato, ao final da leitura, ficamos com esta sensação e também a de querer conhecer ainda mais este gênio universal da nossa literatura.