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Quando o sucesso do seriado The Chosen: Os Escolhidos – produzido com financiamento coletivo e distribuído via aplicativo próprio no início – superou as expectativas, obtendo retorno financeiro e de público, era questão de tempo para que outras iniciativas surgissem explorando o filão bíblico que se provou continuar vivo, firme, forte e rentável. A Netflix talvez tenha sido a primeira da fila com o seu recém-lançado filme Virgem Maria, contando a história de vida de Maria de antes dos Evangelhos até a apresentação do menino Jesus no templo. E fez com a estratégia de sempre, contratando um ator famoso – Anthony Hopkins, no papel de Herodes – para chamar a atenção, mas sem o mesmo investimento no resto, que é quase tudo.
A quase totalidade da obra é baseada no chamado Proto-Evangelho de Tiago, em que se conta a história de Joaquim e Ana, os avós de Jesus, também a vida de Maria até a matança dos primogênitos por Herodes. Alguns dos Pais da Igreja, como Orígenes e Clemente, costumam citá-lo com certa frequência, mas não se tornou canônico por tratar primos de Jesus como se fossem irmãos de sangue, o que vai contra o dogma da virgindade de Maria – também de José.
Esta parte não foi retratada, mas é claro que um filme com essa base é um prato feito para os Caça-Heresias, aqueles que ninguém chamou, mas aparecem para demonstrar que não entendem nada de arte, nem de simples interpretação de texto. Os católicos têm seu Código Canônico, que no cânon 751 estabelece ser a heresia uma negação ou dúvida, ambas de modo pertinaz, de alguma verdade da fé. Uma obra de arte não afirma nem nega nada, e, ainda que o fizesse, onde está a pertinácia num filme, qualquer filme?
Espaço para a criatividade
Há, em qualquer narrativa ficcional baseada na Bíblia, uma margem imensa para a imaginação criativa. Erich Auerbach, no clássico ensaio A Cicatriz de Ulisses, de sua igualmente clássica obra Mimesis, faz uma análise do texto bíblico sobre o sacrifício de Isaac por Abraão apontando quão sintético o texto é, como se mantém focado na essência espiritual do acontecimento e não dá detalhes de quase nada, o que significa dizer que qualquer obra poética baseada no texto terá de acrescentar algo. É o caso da vida de Maria antes da Anunciação.
Do exemplo de Abraão: o que se passou nos 3 dias que Abraão demorou para chegar no monte onde faria o sacrifício? É possível escrever um romance de centenas de páginas sobre o ocorrido no intervalo havido entre a ordem divina e a chegada no monte. O que pensava Abraão, como se sentiu, sua angústia, como foram os “últimos” momentos com seu filho?
Outro exemplo: Thomas Mann fez isso com a história de José e seus irmãos. Na Bíblia, leva-se em torno de umas dez páginas para ser conhecida, mas Mann a transformou em uma tetralogia de quase mil páginas.
Mesmo obras que parecem ser uma transposição da Bíblia para as telas, como A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, também recorrem a complementos imaginativos. Jesus inventou a cadeira no filme, por exemplo. Mel Gibson também se valeu de algo extra-bíblico, usando os relatos das visões da freira estigmatizada alemã Anne Catherine Emmerich, publicadas como A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Alegria espiritual
Em Virgem Maria, é nítida a intenção de, baseando-se no Proto-Evangelho de Tiago e nos relatos bíblicos, imaginar o processo de amadurecimento de Maria, construindo também um José como uma espécie de herói romanesco. É evidente que para algo assim o complemento imaginativo é essencial e a interpretação dos atores é o principal, pois todo esse processo é profundamente transfigurado na Bíblia a partir da Anunciação. A partir daqui há uma alegria espiritual que perpassa tudo, mantendo-se mesmo nas tribulações vividas até a apresentação do menino Jesus no templo.
É uma alegria desafiadora para os atores interpretarem, mais ainda para quem faz o papel de Maria, pois não é uma alegria comum, tal como a experimentamos. É de outra ordem, que até a alegria da maternidade não se confunde, embora seja a mais próxima a servir de base para a imitação. Mas o filme fracassa nisso, até na cena mais óbvia que é a visita de Maria a sua prima Isabel, quando nasce o Magnificat (“A minha alma glorifica ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador”). Em nenhum momento da cena Maria demonstra estar com sua alma glorificada ali.
Sem isso, toda a história perde seu sentido espiritual, como o do “fim” da história do nascimento de Jesus, que é o fim do filme também, com sua apresentação no templo. É quando Simeão diz a Maria que uma espada trespassaria o seu coração. É uma espécie de segunda anunciação, agora da cruz de Cristo.
Como o filme não retrata a alegria de Maria, tampouco alcança a profundidade espiritual do paradoxo da cruz, embora tenha feito algo neste sentido quando Herodes teve um vislumbre dessa cruz muitas cenas antes desta. O abalo sofrido pelo rei é bem interpretado por Hopkins, que serve para ilustrar como o filme poderia ser muito melhor. Mas não é. No máximo, e para cristãos, Virgem Maria é um filme “bonitinho”, nada além disso.
- Virgem Maria
- 2024
- 112 minutos
- Indicado para maiores de 16 anos
- Disponível na Netflix