“Poderão cortar as flores, mas jamais deterão a primavera.” Essa frase, do poeta chileno Pablo Neruda, já foi utilizada em diferentes contextos por figuras no mundo da política. Mas talvez nunca tenha tido a mesma força do que quando declamada por Gustavo Dudamel, regente venezuelano que é o foco do documentário ¡Viva Maestro!, lançado neste mês na plataforma HBO Max.
Dudamel, que em brincadeiras da imprensa estrangeira chegou a ser caracterizado como uma espécie de “Metallica do erudito”, é um dos nomes mais aclamados no cenário da música orquestral. Hoje com 42 anos, já foi considerado um prodígio e agora carrega em seu currículo passagens por entidades como Filarmônica de Viena, Ópera de Paris, Filarmônica de Los Angeles e a Orquestra Simón Bolívar, um dos maiores triunfos da cultura da Venezuela. Caso você não seja um aficionado pela interpretação das obras de nomes como Beethoven e Mozart, o longa-metragem esclarecerá o empenho e a paixão desse maestro pela música, contagiando novatos interessados em se aprofundar.
Além do tal status de gênio, o regente sempre foi considerado uma figura controversa, principalmente por agir de maneira muito branda e apolítica às atrocidades da Venezuela. Prova disso foi quando, em 2013, abandonou seus compromissos em Los Angeles para comandar a orquestra que tocou no funeral de Hugo Chávez, presidente de seu país de origem entre 1999 e 2013. Mas ¡Viva Maestro! mostra que todos podem mudar de opinião, especialmente quando os problemas atingem a sua realidade.
Edificados pelo Sistema
O documentário defende que o foco de Dudamel sempre foi a música, herança de sua formação pelo El Sistema, um programa criado em 1975 para educar jovens por meio da música. O nome bastante superlativo pode assustar quem não conhece o funcionamento de uma orquestra, que quase sempre é financiada ou gerida (integralmente ou não) por órgãos estatais, como é o caso da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, trazendo um exemplo brasileiro. Mas o Sistema se manteve como um orgulho da Venezuela e foi financiado tanto por governos de direita quanto de esquerda – o que não impediu que ele fosse usado como propaganda populista em alguns momentos.
Com esse panorama posto, o silêncio de Dudamel até 2017, período em que o longa foi gravado, faz bastante sentido. Afinal, como diretor do El Sistema e pupilo de seu criador, o maestro José Antonio Abreu, sua única preocupação aparente era a de inspirar o crescimento de jovens pela música e formar instrumentistas para a Orquestra Simón Bolívar. A política era apenas pano de fundo.
Muitas cenas de ¡Viva Maestro! reforçam esse ponto de vista. Em uma visita a um colégio, por exemplo, o número de crianças boquiabertas com a presença do astro é incontável. Mais à frente, adolescentes falam sobre como tocar na orquestra permitiu que eles aprendessem novas línguas e se apresentassem nos melhores teatros do mundo. Essas qualidades começaram a ruir após Nicolás Maduro assumir a presidência do país e, consequentemente, sucatear El Sistema.
O estopim foi quando o violinista Armando Cañizales, de 18 anos, foi assassinado durante uma manifestação, em maio de 2017. O acontecimento abalou tanto Dudamel que, no dia seguinte, ele quebrou seu silêncio político de anos e publicou uma carta condenando a resposta de Maduro aos protestos pacíficos.
“Levanto a minha voz contra a violência e a repressão. Nada pode justificar o derramamento de sangue. Basta de ignorar o justo clamor de um povo sufocado por uma crise intolerável”, publicou em carta bilíngue em suas redes sociais.
Resposta ditatorial
Outros músicos ligados ao El Sistema se manifestaram por seus direitos e acabaram presos, torturados ou até mortos. No documentário, um dos membros da orquestra de Dudamel conta como correu diversos riscos para conseguir uma vacina para sua filha e percebeu que era a hora de abandonar o país.
Aos poucos, as cadeiras dos instrumentistas foram ficando vazias e o projeto foi prejudicado pelo governo ditatorial de Maduro, que cancelou apresentações da Simón Bolívar nos Estados Unidos, China e outros lugares, destruindo o sonho de muitos jovens.
Dudamel virou persona non grata para o governo e também saiu de vez do país, assumindo um posto na Filarmônica de Los Angeles, onde reside atualmente. Mesmo assim, o trabalho de diretor da orquestra venezuelana não foi completamente abandonado. Em ¡Viva Maestro!, vemos o regente cuidar de seu projeto por chamadas à distância – embora isso possa parecer comum hoje, no pós-pandemia, vale lembrar que a película foi rodada em 2017.
Em apresentações fora do país latino, a Orquestra Simón Bolívar ainda tem a oportunidade de ser regida pela batuta intensa de Dudamel, como aconteceu no último dia 27 de agosto, na Escócia. Mas atualmente ele parece muito mais focado em outros desafios para sua carreira.
Neste ano, anunciou que deixará a direção artística da Filarmônica de Los Angeles e assumirá o controle da Filarmônica de Nova York, em 2026. O novo cargo o deixará diretamente na linha de sucessão de figuras como Gustav Mahler, Arturo Toscanini, e Leonard Bernstein, cimentando seu nome entre os gigantes da música erudita. Infelizmente, para a cultura venezuelana, essa ascensão internacional de Dudamel reforça o mal que a ditadura Maduro fez para os jovens ligados ao El Sistema, que agora precisam se contentar com mentorias à distância.
Além de ressaltar as qualidades do regente, que o fizeram virar o maior nome do mundo orquestral atualmente, ¡Viva Maestro! serve como um reforço do papel da cultura na formação de pessoas. Um bem como esse não deveria ser usado de forma populista por governos equivocados, pois a arte é muito maior do que ideais políticos e bandeiras ideológicas.