Ouça este conteúdo
História real: em 1971, durante a guerra civil que resultou na independência de Bangladesh, um grupo de fotógrafos estrangeiros foi convidado a registrar o momento em que alguns prisioneiros foram trazidos para serem expostos, torturados e assassinados a golpes de baioneta diante da população reunida em um estádio esportivo, onde ocorria um ato político com discursos de vitória das forças indianas. Posteriormente, os autores das fotos da execução ganharam prêmios internacionais de jornalismo, com exceção de um, o francês Marc Riboud, o único que se negou a apontar sua câmera para aquela barbárie. Em vez disso, saiu para tentar encontrar algum oficial indiano de patente mais alta que pudesse dar fim ao espetáculo macabro.
Em uma cobertura de guerra, há situações em que a presença de jornalistas inibe abusos contra civis e inimigos rendidos. Em outras, os combatentes querem mesmo é exibir para as câmeras suas atrocidades, como forma de aterrorizar a população e os inimigos. E há vezes em que não faz diferença alguma.
O correspondente de guerra experiente entende a diferença entre registrar com imparcialidade um conflito armado, sem interferir nos eventos que ele observa, e ser conivente com crimes de guerra cometidos por um grupo combatente, mesmo que esteja acompanhando esse grupo nas batalhas e dependa dele para garantir a própria segurança. Não é o caso dos jornalistas retratados em Guerra Civil, superprodução de Hollywood que estreia hoje (18) nos cinemas brasileiros. Para eles, não há dilema. Ao longo da história, eles testemunham e registram vários assassinatos de civis ou combatentes desarmados, quase sempre com naturalidade, e em alguns momentos até colaboram sutilmente para o desfecho.
E pensar que o objetivo declarado do diretor e roteirista Alex Garland, conhecido por filmes de ficção científica e de terror como Ex-Machina, Aniquilação e Men: As Faces do Medo (e por ter escrito A Praia, de 2000, protagonizado por Leonardo DiCaprio), era o de demonstrar a importância do jornalismo para a sociedade. O efeito é o inverso. No lugar da admiração pela coragem dos profissionais de imprensa, sente-se uma certa repulsa pelo que parece ser uma atitude de frieza e de cinismo diante de atrocidades – exceto quando a vítima é um colega.
Perguntas sem respostas
Ao custo de R$ 250 milhões, Guerra Civil é um road movie de ação que conta a história de uma dupla de jornalistas, a fotógrafa Lee Miller, vivida por Kirsten Dunst, e o repórter Joel, interpretado por Wagner Moura, que tentam chegar a uma Washington D.C. sitiada por forças rebeldes com o intuito de entrevistar o presidente americano (Nick Offerman). Juntam-se a eles na viagem a aprendiz de fotógrafa Jessie (Cailee Spaeny) e o veterano jornalista Sammy (Stephen Henderson).
Uma guerra civil que divide e devasta os Estados Unidos em um futuro próximo? Interessante, não é? Qual teria sido o contexto político que levou a isso? Quem está do lado de quem e por quê? Esqueça, o roteiro não traz resposta para nada disso. O motivo para a tal guerra civil é apresentado superficialmente em meia dúzia de falas ao longo do filme. O presidente é autoritário e atentou contra as instituições para se perpetuar no poder; alguns estados se uniram para derrubá-lo. Não muito mais do que isso.
Evidentemente, Garland não quis se aprofundar no contexto político da guerra fictícia para não ver seu filme cair em alguma vala partidária e acabar espantando uma parcela do público das salas de cinema. Mas, com isso, arriscou-se a entregar uma história oca, com uma sequência de cenas de guerra sem sentido.
Quarteto capenga
O que sobra é explorar a jornada dos quatro jornalistas, a relação entre eles e como enfrentam seus conflitos internos em meio ao conflito armado ao seu redor. Mas até nisso o filme falha. Kirsten Dunst transmite com competência o desalento, a desesperança e o cansaço de uma fotógrafa de guerra que já viu de tudo e precisa lidar com seus traumas enquanto registra um conflito em seu próprio país. Mas é difícil para o espectador se conectar com o seu drama, em parte porque a personagem carece de antecedentes, de uma razão convincente para ela ter escolhido aquela vida ou ter se mantido nela por tanto tempo.
O desafio de Wagner Moura é ainda mais ingrato. Seu personagem oscila entre o dramalhão e tiradas de humor. Mas, penalizado por diálogos chinfrins, ele acaba parecendo qualquer coisa, menos o correspondente de guerra experiente que o roteiro diz que ele é. Que repórter calejado na cobertura de conflitos armados chega na linha de frente, coloca o crachá de imprensa no pescoço e sai em meio ao tiroteio mostrando a credencial para os soldados e se apresentando como jornalista? Ao fim e ao cabo, Moura, que antes de se tornar ator se formou e trabalhou como jornalista de coluna social em uma TV na Bahia, acaba não convencendo como jornalista de guerra – apesar de ter contado em entrevistas que leu muitos livros a respeito para se inspirar.
Também é difícil ter empatia por Jessie, a fotógrafa iniciante que entra de bicão na aventura rumo a Washington D.C. e que faz tanta besteira que só o que nos resta é torcer para que ela seja deixada para trás. O único da trupe que acaba despertando genuína simpatia é Sammy, jornalista que se recusa a encerrar a carreira e que vai para a linha de frente apoiado em uma bengala, enquanto os outros ficam chamando-o de “velho”.
Guerra Civil tem cenas que retratam com razoável realismo a maneira como jornalistas acompanham os combates na linha de frente – algumas das quais parecem inspiradas em imagens reais feitas por fotógrafos em guerras recentes. Mas falta ao filme densidade, uma história crível e personagens mais envolventes. Como ode ao jornalismo, não funciona.
Diogo Schelp é colunista de política da Gazeta do Povo e coautor, com o fotógrafo André Liohn, do livro Correspondente de Guerra (Editora Contexto).