Wes Anderson e Roald Dahl. O cineasta e o autor que possuem estilos muito singulares já haviam se encontrado nas telonas em 2009, para a animação O Fantástico Sr. Raposo. Agora, foram reunidos em um momento ainda mais importante, graças a um projeto da Netflix.
Contextualizando: em 2021, a empresa de streaming comprou por cerca de um bilhão de dólares o direito para adaptar as obras do escritor galês, falecido em 1990, e traçou um plano para aproveitar o vasto universo criado por ele, que inclui histórias infantis de sucesso como A Fantástica Fábrica de Chocolate, Matilda e James e o Pêssego Gigante. Com essa nova visibilidade trazida pelo acordo, surgiu um problema: as citadas obras (e mais outras três) andam sofrendo patrulha ideológica e até chegaram a ser alteradas por editoras com o uso de expressões politicamente corretas em substituição a termos como “gordo” ou “feio”, só para citar dois exemplos.
Felizmente, ao produzir quatro curtas baseados em contos de Dahl, recém-lançados na plataforma de streaming, Anderson não se curvou à essa sanha ativista, liderada por organizações como a Inclusive Minds – entrevistada pela Gazeta do Povo no auge da polêmica. “Não quero nem que o próprio artista modifique seu trabalho. Entendo a motivação para isso, mas sou da escola que acredita que um trabalho já está finalizado quando é feito”, afirmou o cineasta americano ao exibir A Incrível História de Henry Sugar, o primeiro dos curtas, durante o festival de Veneza, em setembro. “Certamente, ninguém que não seja o autor deveria modificar o livro de alguém. Dahl está morto”, completou Anderson na ocasião. É essa a visão que ele traz para a produção citada e para os outros lançamentos – O Cisne, O Caçador de Ratos e Veneno.
Mesmo que tenham sido lançados separadamente ao longo de quatro dias, a execução demonstra que Anderson imaginou que todos seriam vistos por seus fãs e por aficionados por Dahl em uma tacada só. A prova disso é que o diretor homenageia o autor cancelado nos quatro curtas colocando-o como um personagem-narrador, interpretado pelo extraordinário ator Ralph Fiennes, de A Lista de Schindler e O Menu. Vale dedicar uma hora e meia do seu dia para vê-los de uma só vez.
Simetrias e manias
O primeiro curta-metragem a ser lançado foi A Incrível História de Henry Sugar, o mais forte (e longo) dos quatro. É ele que dá o tom de todas as películas, caracterizadas por sua rapidez e por reunir o mesmo time de atores, que inclui Fiennes, Benedict Cumberbatch, Ben Kingsley, Dev Patel e Rupert Friend. Sua história acompanha um milionário que aprende uma forma de meditação para trapacear em um jogo de vinte-e-um.
De cara, as principais características de Anderson estão lá: cenas simétricas, cores vibrantes, efeitos práticos (remetendo a montagens de peças teatrais) e atores encarnando personagens cheios de obsessões e manias. O espectador familiarizado com os contos originais de Dahl também identificará as maiores qualidades do escritor, especializado em fantasia. Isso se dá porque o cineasta não alterou nenhuma das palavras, respeitando ao máximo os textos originais do galês.
“Estou tão interessado na maneira como Dahl conta a história quanto na própria história’”, disse Anderson a Netflix em entrevista realizada no início deste ano. “Se eu fizer isso usando suas palavras, suas descrições, então talvez eu saiba como fazer”, concluiu sobre a maneira que encontrou para realizar o trabalho para a gigante do streaming.
Com esse insight, o diretor, que também escreve seus filmes, optou por um roteiro que adaptasse não somente a história dos contos, mas o próprio texto. Essa decisão torna as películas ágeis e testam os atores, que narram e atuam cada frase escrita por Dahl.
Um pouco de mágica
O segundo lançamento, O Cisne, toma um rumo um pouco mais sombrio, o que é curioso para uma obra que nasce de um texto voltado ao público infanto-juvenil, ressaltando o que diferencia a obra de Dahl de outros autores do gênero. Assim como em Henry Sugar, o conto traz alguma mensagem para o espectador, comprovando o refinamento com que as histórias do britânico, quase sempre baseadas em fatos reais, eram produzidas.
Em seguida, foram divulgados O Caçador de Ratos e Veneno, este o mais fraco da coleção Anderson/Dahl. Ambos reafirmam a estética já conhecida do cineasta, mas exibem em duas cenas um elemento de tensão que é inédito em sua filmografia e indicam um possível novo caminho para projetos futuros – no X, antigo Twitter, alguns internautas até brincaram com a chance de o americano estar se aproximando do terror, algo imaginado em um esquete do programa de comédia Saturday Night Live.
Com os quatro curtas-metragens, fica óbvio que os estilos de Anderson e Dahl não são para todos, ainda mais quando unidos dessa forma. A rapidez com que as histórias são contadas e o “excesso” de palavras no roteiro assustarão quem perde o fio da meada facilmente ou quem simplesmente não gostou da estética de Anderson em longas como O Grande Hotel Budapeste ou Os Excêntricos Tenenbaums. Mas, como escreveu Dahl em James e o Pêssego Gigante, “um pouco de mágica pode levá-lo muito longe”. No caso, assistir a eles, oferece uma hora e meia de diversão, leveza e histórias bem construídas. Também ressalta a importância de se valorizar um autor injustamente cancelado num momento em que a sociedade passa a perder suas referências.
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