Ao passar pela vitrine de pet shops, é difícil não se encantar pelos filhotes que ficam brincando entre si ou tirando cochilos enquanto esperam por um novo lar. Os bichinhos, porém, podem ser apenas o final de um sistema que esconde maus-tratos e descuido com os animais. Desde o final de janeiro, a Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) da Polícia Civil do Paraná já resgatou cerca de 300 animais de 11 canis clandestinos em Curitiba e Região Metropolitana – espaços usados para procriação e venda irregulares de animais de raça.
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Apenas nos últimos meses, 14 cães foram encontrados doentes e machucados em um canil clandestino em Piraquara, na RMC. Em outra situação, 43 cachorros foram apreendidos em um local irregular na região Norte de Curitiba. E nesta semana 17 cães da raça yorkshire vendidos clandestinamente pela internet foram resgatados de um canil clandestino na capital.
A criação comercial de animais em área urbana é proibida pelo Código de Saúde do Estado do Paraná desde 2001. Em Curitiba, que não possui área rural, a norma foi reforçada pela Lei Municipal 13.914, de 2011. A criação comercial tem como objetivo final a venda de filhotes e/ou reprodutores. Mesmo assim, as denúncias anônimas de criadouros ilegais, feitas pela Central 156 ou por meio da Rede de Proteção Animal, ambos ligados à prefeitura da capital, são frequentes.
"Se tiver um canil comercial em Curitiba, ele está ilegal. Mas não é necessariamente crime: só vai ser crime se o estabelecimento estiver praticando maus-tratos", explica o delegado de Proteção ao Meio Ambiente da PCPR Matheus Laiola. No caso da Região Metropolitana, que tem em seus limites áreas rurais, a lei permite a existência de criações comerciais de animais. Mesmo assim, muitas vezes os criadores em áreas rurais não têm autorização dos órgãos responsáveis e também podem estar maltratando os animais.
"Toda a questão que envolve animais e sofrimento animal tem tido mais atenção da sociedade, as pessoas estão denunciando mais situações de sofrimento animal", diz a presidente da Sociedade Protetora dos Animais de Curitiba (SPAC), Soraya Simon. Ela acredita que a visibilidade dada às ações de fiscalização realizadas em Curitiba ajuda a aumentar o número de denúncias. "Curitiba é um município que ainda precisa de muito mais apoio e estrutura, mas que tem conseguido trabalhar bastante, com boas condições de fazer muita coisa, o que não acontece em outros lugares onde até existe boa vontade, mas os órgãos não conseguem agir", aponta.
Há uma década, a Rede de Defesa e Proteção Animal da Cidade de Curitiba zela pela educação, fiscalização e prevenção do abandono animal. Além disso, é uma das responsáveis por organizar intervenções conjuntas para coibir irregularidades e crimes. De acordo com a chefe da rede, Vivien Morikawa, as denúncias recebidas pelo órgão quase dobraram. "Ter mais denúncias não é uma coisa ruim, embora gere mais trabalho e a gente precise de mais estrutura. As denúncias querem dizer que eu tenho uma sociedade mais atenta e que não quer colaborar com situações de maus-tratos.”
Bem-estar animal
Canis clandestinos são problemáticos justamente porque estão associados à prática de maus-tratos, principalmente contra os animais reprodutores – chamados de "matrizes", são os pais que dão origem aos filhotes que serão vendidos posteriormente. A professora Rita Garcia, do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que pesquisa bem-estar animal e controle populacional de cães e gatos, explica que podem ser encontrados diversos níveis maus-tratos. "Eles vão de negligência aos cuidados com os pelos e falta de banho até casos bem graves, que interferem na liberdade nutricional, ambiental, comportamental e sanitária do animal", lista.
No aspecto nutricional, exemplifica a pesquisadora, pode ser enquadrada a alimentação inadequada das fêmeas que estão prenhas ou amamentando, além de doenças relacionadas a isso, como desnutrição. A questão ambiental diz respeito ao conforto: cada animal deve ter a sua cama confortável, deve estar em um ambiente protegido das intempéries (frio, calor, chuva) e seguro.
A liberdade comportamental, por sua vez, acaba comprometida não apenas pelo estresse a que os animais mantidos em condições inadequadas – como superlotação – são submetidos, mas também ao privar os filhotes da convivência com os irmãos e com a mãe. É nas primeiras semanas de vida que eles aprendem coisas que vão usar na vida adulta, como a testar a intensidade das mordidas e outros tipos de brincadeiras. "Estudos mostram que animais retirados desse convívio antes dos 60 dias de vida têm mais predisposição a ter distúrbios comportamentais", afirma a veterinária.
Já a liberdade sanitária é prejudicada pela falta de banhos, higienização inadequada dos canis e pela não adoção de um calendário de vacinação diferenciado, desenvolvido especificamente para atender às necessidades de animais que vivem em conjunto. "Como pode ter um maior risco de doenças, o protocolo de vacinas nessas situações é mais intensificado. Mas esses criadores de fundo de quintal fazem protocolos que não têm uma orientação veterinária, aplicando eles mesmos as vacinas. No entanto, ter um veterinário responsável é obrigatório para todos os estabelecimentos que mantêm animais", pontua Rita.
Adoção X comércio
Cada dono de canil clandestino autuado por maus-tratos representa, na prática, um determinado grupo de animais que precisa ser acolhido em um novo lugar. Entram em ação, então, redes de voluntários para facilitar o processo de adoção. Os filhotes de raça, que seriam comercializados, têm boa saída e encontram famílias rapidamente, contam os especialistas. É na hora de achar um lar para os animais mais velhos - e mais mal tratados - que o processo fica mais difícil. "Precisa existir uma forma de acelerar, de responsabilizar essa pessoa [dona do canil clandestino] por tudo até que os animais sejam adotados", opina Soraya.
"A maioria [dos criadores irregulares] 'não está nem aí' e trata os animais de qualquer jeito, sem acompanhamento veterinário. É dinheiro fácil para eles e isso tem que acabar. A fiscalização tem que ser muito forte para impedir que esse tipo de coisa aconteça", ressalta a presidente da SPAC. Ela, assim como a professora da UFPR, sustenta que o ideal é que a comercialização fosse feita diretamente nos canis. "A venda com intermediários, como pet shops, e pela internet tem que acabar. Quem quiser comprar, tem que ir até o criadouro. A gente já foi em locais em que o filhote era bonitinho e o pai e a mãe estavam completamente abandonados – com problemas de pele, magros, com problema de vista", conta.
A Rede de Defesa e Proteção Animal também intermedeia feiras de adoção. "Às vezes as pessoas optam por comprar porque desconhecem que tem tanto animal para adoção. Não queremos impedir que as pessoas comprem animais, mas incentivar que elas adotem", argumenta Vivien. No Centro de Referência para Animais em Risco (Crar) da prefeitura de Curitiba, que recebe animais resgatados pela rede, veterinários atendem, orientam e dão seguimento ao procedimento de adoção para interessados.
Há também grupos de protetores que têm dezenas de animais para adoção. Confira uma lista com as páginas de algumas dessas entidades no Facebook. Quem não puder ou não quiser adotar, pode colaborar doando ração, medicamentos veterinários, cobertores, jornal, entre outros itens.
- Sociedade Protetora dos Animais de Curitiba (SPAC)
- Associação Vida Animal (AVAN)
- Tomba Latas
- Adote Com Consciência Curitiba
- Beco da Esperança
- Associação Ajude Focinhos Curitiba
- Grupo Força Animal
- Animalia Curitiba
- Animais Sem Teto
Comportamento animal
A conversa com um veterinário, de preferência um especialista em comportamento animal, é um passo importante para quem não quer pecar por falta de responsabilidade na hora de adotar ou comprar um animal de estimação. O profissional pode nortear todo o processo para que a combinação entre pet e humano seja a ideal. Esse tipo de cuidado ajuda a reduzir as chances de que haja problemas de adaptação naquela nova casa.
Para quem prefere comprar um bicho de raça, a orientação dos especialistas é de que a pessoa verifique se o pet shop tem cadastro junto a Rede de Proteção Animal, se o pet foi microchipado e que exija conhecer não apenas o canil, mas também os pais do filhote. Só tomando todos os cuidados é possível garantir que, ao comprar um bichinho de estimação, o consumidor não está financiando uma cadeia de exploração animal.
Rita ainda defende que criadores comerciais regulamentados também deveriam fazer esse trabalho junto aos compradores. “Eles não deveriam vender para qualquer um, mas avaliar se aquela família vai ter condições, em termos de dinâmica familiar, de ter um animal de estimação, de ter aquela raça. O criador comercial tinha que ter essa consciência”, conclui.