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| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

“De repente eu estava com um revólver calibre 32 apontado para mim e com o cara puxando o gatilho. Foram três disparos. Todos falharam. Foi por Deus que não aconteceu nada”, relembra Ronaldo de Assis Picagewicz. Motorista há seis anos, ele havia deixado o Terminal de Piraquara 25 minutos antes quando dois homens entraram no ônibus que conduzia, o Piraquara-Curitiba. “Quando eles embarcaram, já deram voz de assalto. Um deles sacou a arma e colocou na minha cabeça”, relembra. O assaltante obrigou o motorista a arrancar o veículo e seguir viagem. O segundo agressor pulou a catraca para começar uma limpa nos passageiros que compartilhavam a viagem naquela manhã. Não deu tempo de pensar. Em segundos, um homem que ainda não havia passado a catraca se jogou em cima do assaltante armado. “Ele agarrou no pescoço e com uma das mãos tentou segurar a arma”, conta. Os dois começaram a lutar no pequeno espaço entre a porta e a roleta, em cima do motor do veículo. Era exatamente ao lado do motorista. “Mas o passageiro não conseguia controlar o assaltante. Então ele começou a gritar para alguém ajudar. Foi quando o rapaz [o criminosos] tentou disparar. Eu consegui parar o ônibus e me vi na obrigação de ir para cima dos dois”, relembra. Por pura sorte, conseguiram rolar para fora do veículo e dominar o primeiro criminoso, enquanto o segundo era detido pelos outros passageiros. Era para ser um dia de festa. Era manhã do domingo de carnaval.

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A reação a um assalto, claro, é totalmente desaconselhada por especialistas em segurança. Por pouco Ronaldo ou algum dos 25 passageiros daquela linha escaparam de se tornar um número; mais um triste dado na preocupante estatística sobre a violência no transporte coletivo. Na semana anterior, um passageiro de uma outra linha havia sido morto em uma ação semelhante. O homem, de 37 anos, mesma idade de Ronaldo, reagiu a um assalto em um ônibus que fazia o trajeto entre Curitiba e Campo Magro. Ele levou um tiro na cabeça e morreu no hospital dois dias depois. O trio de assaltantes fugiu a pé, mas foi capturado horas depois.

De 2017 para cá, os arrastões no transporte público deixaram um rastro de três mortos e cinco feridos. Somente neste ano (ainda nem terminamos o segundo mês), foram 15 ações criminosas deste tipo. Em Curitiba e Região Metropolitana, ocorre um arrastão a ônibus a cada quatro dias. Se continuar nesta projeção, o ano fechará com um número de assaltos dessa modalidade bem superior ao do ano anterior, projeta Dario Pereira, diretor de segurança do Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Curitiba (Sindimoc). Um número que pode estar, inclusive, subnotificado. “Às vezes, o criminoso entra e sequer assalta o cobrador, vai diretamente nos passageiros. Só que o passageiro lesado acaba não registrando boletim de ocorrência, porque não quer ir até a delegacia e perder um dia inteiro. Só que Polícia Militar e Guarda Municipal trabalham em cima de estatísticas”, defende. “Nesses casos, nós tomamos conhecimento do evento, mas eles não entram para as estatísticas oficiais. Já aconteceu de pedirmos policiamento em algum lugar e o órgão de segurança falar: ‘mas não temos registro de criminalidade ali’”, lamenta Pereira.

O crime pulou a catraca

Não é coincidência o número de arrastões ter subido do ano passado para cá. Foi quando o crime pulou a catraca. Até então o que se tinha eram assaltos a motoristas e cobradores como principal tipo de violência no transporte público – aquela modalidade em que o criminoso leva apenas dinheiro do caixa (dentro da linha ou em uma estação-tubo, por exemplo). Mas a retirada do dinheiro dos veículos, com a maior adesão ao cartão-transporte, inibiu esse tipo de ação. “É o caso de São Paulo, Joinville, Campo Grande. Não ter dinheiro dentro dos ônibus faz o assalto deixar de existir”, aponta Luiz Alberto Lens César, diretor-executivo das Empresas de Ônibus de Curitiba e Região Metropolitana, a Setransp.

Segundo números do sindicato que representa esses empresários, os assaltos desse tipo diminuíram. Em 2016 foram 1.923 ações em estações-tubo e 1.153 dentro dos veículos; em 2017, os números caíram para 905 e 774, respectivamente.

Os arrastões, porém, parecem caminhar no lado oposto. “Quando se inibe algo, o crime migra para outro modelo. Eles [os ladrões] passaram a assaltar os passageiros”, diz. Os olhos passaram a se voltar aos bens carregados pelos passageiros: roupas, acessórios, dinheiro e, principalmente, smartphones. Se em 2016 e anos anteriores os registros destas ações eram tão tímidoss que os sindicatos sequer se preocupavam em registrá-los, em 2017 o jogo virou: foram pelo menos 45 arrastões, em uma estimativa do Sindimoc – o sindicato é a única fonte que discrimina as duas modalidades de crime (assalto ao caixa do ônibus e arrastões), já que os BOs não fazem essa distinção.

E isso começou a ter seu efeito sentido. A onda de violência somada a um preço alto das passagens foram fatores primordiais para a queda no número de passageiros nos últimos anos. De 2016 a 2017 foi na ordem de 14% -- algo em torno de 7 milhões de usuários. Gente como a professora Maria Helena Barbosa. “Voltava de ônibus do Batel até o Portão à noite. Hoje divido um Uber com uma amiga. Gastamos para chegar em casa por volta de R$ 17. É o dobro do preço de uma passagem para cada uma, mas chego mais rápido e com segurança”, defende.

A busca por soluções

O medo é um passageiro insistente que só desce no ponto final, aponta Dario Pereira, do Sindimoc. “Vivemos em um clima de apreensão. A região Sul é a mais crítica, mas já teve arrastão na [Avenida] Kennedy e nas linhas metropolitanas”, diz Dario Pereira. Para o Sindimoc, é preciso agir rápido para evitar que tal situação se torne insustentável. O sindicato defende três pontos: aumento das ações conjuntas da Polícia Militar e Guarda Municipal na abordagem aos veículos; uma delegacia especializada no atendimento a este tipo de crime e câmeras de monitoramento, em todos os ônibus, integradas à central de operação das policias.

As ações de prevenção e repressão parecem ser onde as coisas caminham melhor, ainda que com um manto de mistério. O Executivo municipal coordena um programa de monitoramento, a Patrulha do Transporte Coletivo. Porém, a secretaria responsável pela ação, de Defesa Social e Trânsito, é evasiva sobre se o efetivo deslocado para atender a uma frota de mais de 1,6 mil veículos. Em nota, a secretaria se restringiu a dizer que faz patrulhamentos diários, se recusando a citar números. “Por questões de segurança, o efetivo empregado não é divulgado. Há ações, inclusive, em parceria com a Polícia Militar e, nos próximos dias, começarão a ser feitas abordagens conjuntas com a Polícia Rodoviária Federal, em linhas que fazem a interligação entre Curitiba e municípios da região metropolitana”, diz o texto.

Segundo a pasta, a região Sul “é a que está recebendo mais atenção” por ter o maior número de registros. “As ações são de prevenção, para inibir eventuais delitos e demonstrar a presença do poder público nas linhas”, termina a nota.

Também em nota, a Polícia Militar diz que tem intensificado suas operações de prevenção e repressão a este tipo de crime “nas proximidades de linhas de ônibus, estações-tubo, e terminais”. “Diversas ações, como operações de abordagens e bloqueios policiais estão sendo feitas pela PM nas linhas potenciais de furtos e roubos”, diz o Primeiro Comando. De acordo com a coordenação do policiamento na capital, em fevereiro “iniciaram-se ações específicas nesse sentido, obtendo-se bons resultados na prevenção e na repressão imediata da criminalidade nestes ambientes”. A PM diz que oito pessoas foram presas por envolvimento em crimes no transporte coletivo público. Em 2017, foram 74 prisões.

“Eles estão dando apoio na medida do possível. Sempre que repassamos informações, eles atendem”, pondera Dario, do Sindimoc. “Mas tem que ter mais abordagens da PM e da Guarda Municipal”, cobra. A criação de uma delegacia especializada neste tipo de crime é uma forma de intensificar o combate, ele defende – por enquanto, tais crimes seguem sendo atendido pela delegacia de furtos e roubos. Mas a questão parece ser carta fora do baralho da Secretaria de Segurança Pública (Sesp). No ano passado, a pasta disse à Gazeta do Povo que uma especializada precisaria de “estudo de necessidade” e que, até aquele momento, não havia razão para a criação.

A batalha das câmeras

É em relação ao monitoramento por câmeras que a questão parece se arrastar com mais dificuldade. Para o Sindimoc, é preciso ter os equipamentos em todos os veículos. Esse é o principal ponto da pauta. E, de fato, onde tal medida foi adotada, os efeitos parecem ter sido sentidos. Em Porto Alegre, onde a instalação dos gravadores na frota de 1.700 veículos começou em 2015 e foi finalizada em 2017, o número de arrastões caiu 80%, de acordo com o sindicato de motoristas e cobradores local.

Curitiba poderia ter iniciado a migração até antes da capital gaúcha. Desde 2011 há uma lei municipal obrigando a instalação de câmeras em veículos do transporte coletivo que circulam pela cidade. Mas nunca foi cumprida. É que o autor de tal legislação, o ex-vereador Juliano Borghetti, não especificou quem deveria arcar com os custos. Enquanto a Urbs jogava a responsabilidade nas empresas de ônibus, as companhias afirmavam que tal equipamento é de ordem de segurança pública e que a exigência não constava no contrato firmado em 2010. Somente após os episódios recentes de violência, do último ano para cá, é que os órgãos responsáveis passaram a testar o equipamento. Em julho passado, a Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (Comec), órgão do Estado, sentou-se à mesa com Urbs e empresas que atuam no transporte público para discutir a questão e começar os testes.

“Mas já estão testando há seis meses. Chega de teste. Não adianta também olhar só para as canaletas. Os arrastões são, em, sua maioria, em linhas alimentadoras”, cobra Dario.

Nesta semana, a Comec e Urbs terminaram a instalação de câmeras em uma frota de 25 novos biarticulados que circularão em Curitiba a partir de março. São oito delas, espalhadas por todo o veículo (sete internas e uma na parte externa). Porém, o equipamento deve ser instalado apenas dessa forma, diz a prefeitura, em veículos novos, de renovação de frota – serão 450 deles até 2020 (os biarticulados citados estão nessa conta). Não resolve o problema como um todo, já que a frota antiga foi deixada de lado. A Urbs também não responde sobre uma questão delicada: quem terá acesso às imagens e se elas serão integradas a uma central de operações.

Nesta semana, um projeto de lei ofereceu uma saída para acelerar a instalação do equipamento. Entrou em trâmite na Câmara Municipal uma proposta do vereador Oscalino do Povo (Pode) que autoriza parcerias com a iniciativa privada para instalação dos equipamentos. Em troca, o empresário ganharia espaço publicitário nos Ônibus. O material ainda está sendo analisado juridicamente.

Ainda assim, é uma situação que não pode viver de “curativos”, aponta a professora Joyce Pescarolo, doutora em Sociologia e pesquisadora do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR. “Este aumento de criminalidade reflete a situação política que estamos vivendo: crise econômica, crise moral das instituições, grau altíssimo de corrupção e impunidade. Tudo isso tem efeito na violência e na criminalidade como um todo, inclusive no transporte público”, diz. E não há solução no curto prazo. “Várias pesquisas apontam que o que diminuiu a violência não é a repressão, mas sim o investimento em bem-estar social. Educação, emprego, previdência, saúde. Invista nisso e você terá uma diminuição geral na criminalidade. Mas nossa lógica é justamente o contrário: nós focamos muito em polícia. Não que não deva haver policiamento. Mas tomamos a repressão como única forma de solucionar os problemas”, define.

Enquanto isso, passageiros e profissionais esperam com urgência uma solução visível, que quebre a rotina diária de medo a que estão expostos. Ronaldo, o motorista do início desta reportagem, voltou ao trabalho no dia seguinte. Precisa seguir trabalhando para sustentar as duas filhas. Os 25 passageiros daquela linha, provavelmente também. “Mas eu fico apreensivo. O psicológico fica abalado. Toda hora volta aquela cena à cabeça”, diz.

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