Cartório tem 7 livros com registros de escravos| Foto: Durval Ramos / Gazeta do Povo

Com apenas 11 anos, o pequeno João foi vendido. Sem um sobrenome, o garoto de cor parda, que trabalhava como lavrador em uma fazenda na região de Curitiba, passou a ter um novo dono a quem servir dali em diante. Assim como tantos outros em situação parecida em 1873, ele era um escravo que havia sido recém-comercializado — e cujos detalhes da transação estão até hoje nos livros de registro de um cartório de Araucária.

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Esse é apenas um entre os vários documentos de compra e venda de escravos existentes nos arquivos do 1.º Tabelionato de Notas da cidade. O cartório guarda sete livros do fim do século XIX, quando a escravidão ainda era permitida no país. E é nas páginas amareladas pelo tempo que essas escrituras contam um pedaço da história do município, do Paraná e do próprio Brasil.

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De acordo com o tabelião substituto responsável, Luiz Guilherme Martini, de 39 anos, a descoberta dos documentos foi uma enorme surpresa. Sua família trabalha no ramo cartorário há 29 anos e há dois assumiu o 1.º Tabelionato de Araucária. Foi quando soube da existência dos registros. “Foram os funcionários que nos informaram que esses livros estavam nos arquivos. Tomamos um susto enorme por ser algo muito curioso historicamente”, conta. “Na hora que soube que eles existiam, fui atrás para ler”.

E a história do pequeno João foi apenas uma das várias que ele e os demais funcionários encontraram explorando os livros. Nos volumes que vão de 1855 a 1888, quando a escravidão foi abolida do país, é possível achar várias outras escrituras de compra e venda, assim como testamentos que passam escravos para herdeiros e até cartas de alforria de escravos que conseguiam comprar sua própria liberdade.

Para Martini, é justamente a naturalidade com que essa situação é descrita nos documentos que mais chama a atenção. “Trabalhando há tanto tempo com cartório, a gente se acostuma com compra e venda de imóveis e veículos, de bens. E, de repente, você se depara com a venda de pessoas. É um choque enorme”, revela o tabelião, que desde os 16 anos se habituou com a linguagem cartorária.

Para ele, a existência desses livros é uma forma de preservar parte da História do país. “É o tipo de coisa que a gente só via na escola. Quando a gente viu esses documentos, ficou muito mais próximo, mais real”, afirma. Por isso, segundo Martini, os livros já foram até levados para exposições em colégios da região, para que os estudantes também pudessem ter uma noção que era, de fato, a escravidão.

De acordo com o professor de História Contemporânea da PUCPR e doutor em História pela UFPR, Wilson Maske, descobertas como essa não chegam a ser raras, mas continuam sendo muito importantes. “Existem vários registros que ainda não foram localizados, documentos que ainda estão espalhados por aí”, diz. “Não existe um levantamento, então não sabemos ainda o que se tem a descobrir. Então achados como esse são muito importantes”.

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| Foto: Durval Ramos / Gazeta do Povo

Histórias da “Freguezia do Iguassú”

No fim do século XIX, Araucária ainda se chamava Freguezia do Iguassú — na grafia da época — e era um distrito de São José dos Pinhais. Como explica Maske, o estado tinha uma quantidade menor de escravos do que em províncias como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Ainda assim, o mercado escravocrata existia por aqui.

Para o professor, ainda que em menor número do que em outras províncias, a mão de obra escrava foi responsável por boa parte do desenvolvimento populacional do estado. Nesse período, o Paraná era majoritariamente rural, com fazendas de produção pecuária e de erva-mate. “Muitas das localidades que aparecem nos registros ainda existem”, explica o funcionário do 1.º Tabelionato, Luiz Antônio Machado Ferreira. “Alguns desses locais são os mesmos. Bairros como Onça e Tietê são rurais até hoje”.

Ferreira é um dos poucos que consegue ler com facilidade os escritos do fim do século XIX. Segundo ele, o segredo é o tempo de experiência: há 37 anos ele trabalha com cartórios e se acostumou com o linguajar típico do ofício — que mudou muito pouco nesses quase 150 anos. “Já me acostumei com a letra e a linguagem de cartório, que segue mais ou menos um padrão desde aquela época”, diz.

E foi assim que ele encontrou várias histórias, seja de outras crianças vendidas ou de famílias de escravos que eram deixadas como herança em testamento. Em algumas páginas é possível encontrar escrituras de escravos que compraram sua própria liberdade. O preço varia bastante, indo de 200 mil réis até um conto — em uma conversão aproximada, entre R$ 24,6 mil e R$ 123 mil na moeda de hoje.

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Em um dos livros, uma exceção: um senhor libertou uma escrava sem cobrar nada por isso. Em outro, um casal libertou uma escrava para que ela gozasse de sua liberdade “como se ventre livre fosse” — contanto que ela os servisse enquanto fossem vivos.

Entre as dezenas de escravos que aparecem nesses documentos, alguns chamam a atenção. É o caso de Ignácio, descrito como um escravo branco, evidenciando a miscigenação que já existia na região dois séculos atrás. “Escravos brancos não são comuns. Talvez ele fosse pardo bem claro, mas filho de escravo — e é isso que vai determinar”, afirma o Wilson Maske, professor de História da PUCPR.

Livros sofrem com desgaste após 150 anos| Foto: Durval Ramos / Gazeta do Povo

Preservação

O problema é que o tempo é implacável e alguns desses livros já começam a sofrer o peso de seus mais de 150 anos. O primeiro volume, por exemplo, está com as páginas soltas e alguns rasgos. Os demais estão bem preservados, embora com as folhas amareladas e algumas marcas de traça aqui e ali. E, apesar de bem guardados nos arquivos do cartório, eles precisam passar por um processo de restauro para manter essas histórias vivas.

“A gente trata esses livros como algo de cartório”, diz o responsável pelo 1.º Tabelionato de Araucária. “O cartório é um órgão do estado do Paraná e é preciso de uma autorização judicial para tirar esses livros daqui — mesmo que ele tenha 150 anos”. Segundo Martini, ele não tem ideia de quem procurar para fazer a recuperação desses documentos e que, por ser uma instituição pequena, o cartório não tem condições de arcar com esse custo. “Por nós, não teria problema algum em ele ser restaurado ou mesmo levado para um museu. Só que isso não depende da gente”.

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Enquanto isso não acontece, ele diz que o cartório está aberto para qualquer pessoa que queira conhecer os arquivos e ver um pedaço da História que se esconde em seus armários. “Somos uma equipe pequena, mas estamos abertos para quem quiser conferir”, afirma Martini.

Para Wilson Maske, é importante que os livros sejam bem acomodados e estejam organizados, o que pode ajudar pesquisadores no futuro. “Mas é propriedades deles e essa disponibilidade deve partir deles”, destaca o doutor em História. “O importante é que haja uma preocupação em preservar e que exista a possibilidade de que pesquisadores tenham acesso, para que possamos conhecer um pouco mais dessas histórias”.