Jaime Nunes Silveira é o fundador da tradicional loja de bicicletas Cicles Jaime| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Esquecida no bicicletário do prédio por muitos anos, a Caloi Cruiser Croma precisava de reparos. Um adesivo antigo, da Cicles Jaime, mostra que não seria a primeira revisão: já tinha ido para a oficina em 1999, com oito anos de uso. Vinte anos depois, seguiu o mesmo caminho, para a João Negrão, endereço do estabelecimento familiar construído por Jaime Nunes Silveira, estrela do ciclismo paranaense entre a década de 1950 e 1960.

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Aos 82 anos, o ex-atleta não cumpre mais expediente na loja. Mas era um mecânico como poucos. Começou cedo, montando e desmontando várias vezes a bicicleta que ganhou aos dez anos da irmã mais velha, Paulina. Casada com um militar da Aeronáutica, tinha condições de dar o presente que os pais não podiam. Foram em uma loja Prosdócimo, grande rede paranaense, e compraram uma bike Bristol, preta.

Em conversa com a Gazeta do Povo, Jaime relembra detalhes da época. Já por volta dos 16 anos, tinha assumido o ofício, com uma placa em frente à casa dos pais, oferecendo os serviços. “Dei um bom mecânico de bicicletas. Ali na Vila São Paulo, no Uberaba, fiz nome, e até o padre Julio Saavedra, um europeu que chegou para catequizar a região, trouxe uma bicicleta inglesa, Philips. Ele andava, com a batina e de bicicleta, e começou a bater lá em casa, pedindo para eu arrumar a dele também”, conta. O padre, porém, não era um cliente como os outros. Na hora de pagar, tirava um santinho do bolso e oferecia a Jaime. “Era o ‘dólar’ dele”.

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Nessa época, Jaime saía do Guabirotuba para o Centro de Curitiba, na Praça Dezenove de Dezembro, para comprar peças na Agência da Bicicleta, comércio com 77 anos de existência. Os longos percursos de bicicleta lhe garantiram resistência, e ele começou a participar de corridas. A primeira foi pitoresca: uma prova perde-ganha, em que o objetivo era ficar por último. Ele se equilibrou por 14 minutos na bicicleta e foi vencedor. Era o ano de 1952, e Jaime tinha apenas 15 anos.

Em uma época em que o ciclismo vivia um período de ouro no Brasil, com muitas competições e reconhecimento, empresas e clubes enviavam olheiros em busca dos melhores atletas para suas equipes. Foi assim que Jaime entrou para a equipe do Instituto Kolber “Fui bem em uma corrida, tinha uns olheiros lá. Um do instituto me chamou, me contrataram, me deram uma bicicleta. E assim fui vice-campeão paranaense de ciclismo, em 1954”, conta.

Depois disso, Jaime passou uma temporada em São Paulo, correndo pelo Palmeiras. Ele conta que passava o dia pedalando pela cidade, cobrando a mensalidade dos sócios do clube. Em 1956, voltou para Curitiba, desta vez representando a equipe Hermácia, da então tradicional loja de departamentos Hermes Macedo, um dos maiores grupos empresariais da história do Paraná. Em outubro, foi um dos representantes paranaenses no Campeonato Brasileiro de Ciclismo, realizado no Ibirapuera, em São Paulo. “A equipe paulista era a mais forte. Na corrida, alguns se destacaram na frente: três paulistas, eu, paranaense, e um mineiro. Era uma corrida de resistência, 156 km pedalando, quase meio dia correndo no velódromo. Mas eu era muito bom de sprint. Viemos no pelotão, perto da chegada, ah, não deu outra, eu venci”, detalha o ex-atleta.

A conquista o levou ao estrelato: foi manchete em jornais, deu várias entrevistas e posou para fotos. Mais importante: foi escalado para o Campeonato Sul-Americano, em Montevidéu. De lá guarda boas memórias, como a paixão dos uruguaios pelo ciclismo: “O velódromo lá fica ao lado do Estádio Nacional, e quando tem jogo de futebol não tem disputa de ciclismo, porque os dois mobilizam toda a população”. Em uma das provas, conquistou o segundo lugar, mas o que marcou foi uma queda, que lhe rendeu uma ida ao hospital. Mesmo machucado, na volta ao Brasil foi para Londrina correr em uma prova, a pedido do prefeito, para não desapontar o falecido pai, do qual fala com muita afeição.

Ganhando provas, prêmios em bicicleta ou em dinheiro, o ciclista acumulou fama e dinheiro. A oficina de bicicletas aberta ainda em 1956 com o nome Cicles Trianon foi substituída pela marca Cicles Jaime, para aproveitar o nome tão repetido pelas rádios, como vencedor das corridas que participava. O estabelecimento ficava localizado na Rua Conselheiro Dantas, no Prado Velho. Depois comprou o terreno na Rua João Negrão, onde abriu um atacado de peças. No andar de cima, morava com a família.

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Jaime teve passagens ainda pelos clubes Prosdócimo, patrocinador de um tradicional circuito de rua, e também na Associação Atlética Alvorada, do Café Alvorada. Não era por menos que as principais empresas do estado estavam envolvidas com o esporte: ele atraía multidões às ruas, fato bem documentado em fotos antigas que adornam paredes e a sala de troféus de Jaime Nunes na loja. Conforme ele conta, o salário de um ciclista era equivalente ou até maior do que as das estrelas do futebol. Mesmo assim, faltava patrocínio. O sonho de representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de Melbourne, na Austrália, em 1956, ou um outro campeonato mundial não se concretizou.

Acidente

Jaime conta que continuou disputando corridas até por volta dos 30 anos, quando a mãe lhe disse para diminuir o ritmo, para cuidar da família – duas crianças, Jaime Filho e Marcia. O casamento com Lúcia Bahr ocorreu em 24 de janeiro de 1959, quando ele ainda se recuperava do pior acidente que teve na vida. Quando estava prestes a casar, em dezembro de 1958, foi atropelado, e quebrou a bacia. “Estava com uma mochila nas costas, ia comprar peça. Ali na frente da Hermes Macedo na João Negrão, tinha uma caminhonete, que abriu a porta quando passei, bati ali e fui jogado para baixo de um caminhão que vinha passando. Fui parar numa clínica na Doutor Muricy, e me engessaram todinho”, conta o ex-atleta.

Jaime e Lúcia são casados há 60 anos| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

O médico avisou do risco de sequelas, que não vieram. Na família de católicos, uma das irmãs fez uma promessa, e assim que possível Jaime levou um pedaço do gesso para Aparecida. Mais ou menos um ano após o acidente, voltou a competir a todo o vapor. Ele ainda hoje cultiva hábitos saudáveis e religiosos: caminha em direção à Igreja do Sagrado Coração de Maria, na Avenida Presidente Getúlio Vargas, acende algumas velas e retorna para o apartamento onde mora há décadas. No andar de cima da Cicles Jaime, ele não tinha sossego, conta: “No final de semana vinha gente do interior comprar peça, eu não sei dizer não. O cara chegava lá, de Maringá, dizendo ‘tô indo pra praia, mas podia me arranjar câmeras de ar, guidão’”, relata.

A Cicles Jaime atendeu a diversas empresas, entre elas a Gazeta do Povo, que até anos atrás tinha uma frota própria de bicicletas para entrega do jornal diário. O imóvel atualmente ocupado pelo estabelecimento foi construído em 1983. No início dos anos 90, a partir de um projeto da prefeitura, construiu um bicicletário no Passeio Público, ofertando aluguel de bikes – espaço ocupado até 2017. Hoje, atende no atacado oficinas do interior do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, mas continua sendo uma das maiores varejistas do ramo em Curitiba.

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A loja é conduzida há tempos por Jaime Filho, e agora, seus três filhos - a terceira geração - também participam. Jaime Nunes e a esposa, Lúcia – que cuidou do financeiro da loja por 25 anos – ocuparam boa parte das últimas décadas viajando para o exterior. “Trabalhei muito, mas usufruí. Tem gente que só trabalha e armazena dinheiro. A gente o usou bem”, diz.

Jaime Filho está à frente da empresa criada por seus pais| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Idade do Ouro

Em 2012, a Gazeta do Povo publicou uma série produzida pelo jornalista José Carlos Fernandes mostrando a época de ouro do ciclismo em Curitiba. Dizia-se que era uma febre na cidade. A bicicleta teria se popularizado como veículo para ir ao trabalho a partir do final da década de 1940, período que coincide com a nacionalização da linha de montagem. Até então, as bikes eram importadas, mas a Segunda Guerra Mundial ocasionou falta de peças. Segundo o Atlas Esporte Brasil, a Casa Luiz Caloi começou a produzir peças em um barracão no Brooklyn, em São Paulo, em 1945. Em 1948, a empresa Monark começou as atividades no Brasil, inicialmente com peças importadas e, dois anos depois, com produção local.