“Eu sou maluco, né?” Em meio a risos, essa é a primeira reação do embaixador Fausto Godoy quando perguntado sobre a origem da coleção de quase 3 mil peças de arte asiática que há dois anos foi doada ao Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. A segunda reação é devolver ao interlocutor uma outra pergunta: “você está com tempo? Porque é uma história longa”.
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Não poderia ser diferente, afinal estamos falando de uma coleção formada ao longo de 16 anos e que passa por 11 países. Só que, diferente de muitos colecionadores, que buscam a satisfação pessoal e se orgulham de ostentar o patrimônio, Fausto teve desde o início um objetivo bem definido: compartilhar com os conterrâneos do Brasil a riqueza desse tesouro colhido do outro lado do mundo.
A missão começou a ser cumprida em 2018, quando foi aberta no MON a exposição permanente Ásia: a terra, os homens, os deuses, com aproximadamente 200 peças da coleção doada pelo embaixador. Sucesso de público, a mostra entrou na semana passada em uma nova etapa, com a abertura da sua segunda edição, como definem os organizadores. Além da renovação de 50% das obras expostas, a exposição ganhou uma nova divisão, agora por núcleos de regiões e civilizações.
Para entender a dimensão não apenas da exposição, mas de todo esse acervo, é necessário mergulhar na história desse filho e bisneto de cartorários de Bauru, interior de São Paulo. “Tudo o que eu não queria era ser rico e morar em Bauru”, relembra Fausto ao explicar a decisão de seguir a carreira de diplomata, iniciada em 1976. Isso depois de um período em Paris, onde fez doutorado em Direito Internacional, estudou Língua e Civilização Francesa na conceituada Universidade de Sorbonne e cursou História da Arte na Escola do Louvre.
Após servir nas embaixadas de Bruxelas e Buenos Aires, veio o convite para trabalhar em Nova Delhi, na Índia. O ano era 1984 e a realidade com a qual o diplomata se deparou teve tamanho impacto que, garante, mudou sua vida para sempre. “Foi o grande choque da minha vida, algo que me desestruturou. E o que me desestruturou foi a força da cultura daquele país, que era avassaladora. Então, eu tinha duas opções: ou me trancava na embaixada, ou tentava entender aquele gigante indecifrável. Optei pela segunda.”
Como parte desse processo de entendimento, Fausto enveredou pela arte e pela cultura. A primeira aquisição foi uma peça “exótica”, típica da Índia. “E ali eu me comprometi comigo a fazer uma coleção. Tomei essa decisão de não fazer isso por mim, mas pela minha sociedade. Eu acredito que somos energia de passagem, nosso esforço vai ficar se pudermos contribuir para alguma coisa”, afirma. Depois da Índia, passou por China, Japão, Paquistão, Afeganistão, Vietnã, Taiwan, Iraque, Bangladesh, Cazaquistão e Mianmar.
Por onde passou, Fausto foi adquirindo obras de arte, artefatos históricos e peças culturais que ajudassem a entender os locais onde estava vivendo. E, como faz questão de ressaltar, nada foi adquirido aleatoriamente. “Optei por colecionar peças somente de países onde morei, como um compromisso de entender o que estava vendo. Não tem uma peça que eu não tenha estudado antes ou depois de comprar. Trata-se de um patrimônio visual e intelectual”, frisa. Junto com as peças doadas ao MON também foram 1,8 mil livros, CDs e DVDs que explicam o valor do acervo.
Da Ásia para Curitiba
A segunda parte dessa história – marcada por reviravoltas – começa em 2015, quando Fausto Godoy se aposentou do Itamaraty e pôde se dedicar com mais afinco ao universo das artes. Instalado em Brasília, ele construiu uma casa para abrigar a coleção adquirida na Ásia, um espaço que, em suas palavras, “tinha mais cara de museu”. A ideia era transformar o imóvel no Núcleo de Estudos Asiáticos da Universidade de Brasília (UnB) e as negociações para isso caminhavam bem, até que o reitor da instituição deixou o cargo e o projeto foi abandonado.
À época, Fausto integrava o Conselho Curatorial do Museu de Arte de São Paulo (Masp), então coordenado pelo professor e crítico José Teixeira Coelho. Veio daí a sugestão para realizar uma exposição, depois a proposta de doação do acervo e, por fim, um acordo para ceder as obras em comodato ao museu. Novamente, a história se repetiu: com tudo encaminhado, Teixeira Coelho deixou o cargo e a nova curadoria do Masp não manifestou interesse em receber as obras. Pior, algumas peças que ficaram armazenadas no museu foram danificadas.
Foi então que Curitiba cruzou o caminho do diplomata. Por intermédio do ex-curador do Masp, que iniciou as conversas com a diretora-presidente do MON, Juliana Vosnika, Fausto veio conhecer o museu e gostou do que viu e ouviu. Em janeiro de 2018, ele oficializava a doação da coleção, com as únicas condições de que houvesse uma sala expositiva permanente e que o acervo fosse bem cuidado. “Foi uma decisão acertada não somente pela preservação das obras, mas porque contribui para a descentralização da cultura além do Rio e São Paulo”, avalia.
Eu me comprometi comigo a fazer uma coleção. Tomei essa decisão de não fazer isso por mim, mas pela minha sociedade. Eu acredito que somos energia de passagem, nosso esforço vai ficar se pudermos contribuir para alguma coisa
Fausto Godoy, embaixador responsável pela doação do acervo que compõe a exposição Ásia: a terra, os homens, os deuses
História e reflexão
Chegamos então na terceira parte dessa história que começou na Índia e terminou em Curitiba. Em março de 2018, foi aberta a exposição Ásia: a terra, os homens, os deuses, que fazia uma primeira apresentação do acervo de maneira mais didática. Na oportunidade, os itens foram divididos por categorias: madeira, papéis, tecidos, mobiliários, etc. Nessa nova etapa, a exposição está mais próxima da ideia original de Fausto, dividida por civilizações e países. “O visitante faz a leitura de acordo com as regiões. Há um conceito estético formado pelas peças que se encaixam nesse universo”, explica.
Alguns itens se destacam na nova montagem: um recipiente para pincéis (Bitong) da Dinastia Ming (1368-1644); a cama com dossel feita com madeira jacarandá, do século 18, da região de Hyderabad, na Índia; pequenos unguentários de vidro do século 1 a.C., peças raras com pouquíssimos exemplares em exibição no mundo; pôsteres feitos à mão durante a Guerra do Vietnã; e tapetes confeccionados por crianças na Guerra do Afeganistão. Fausto também chama a atenção para a seção dedicada a Mianmar, antiga Birmânia, que se tornou república somente em 2010. “É um país que esteve fechado para o mundo durante muito tempo. Talvez seja a primeira vez no mundo que um museu apresente essa cultura profunda, que muitas pessoas não conhecem.”
Mais do que a oportunidade de conhecer culturas das quais pouco se conhece, passear pela exposição no MON é também um incentivo à reflexão, na opinião do diplomata. “Fico muito preocupado com esse momento de radicalização da política no mundo todo. Essa divisão entre nós e outros é a causa de todas as catástrofes, e muitas das obras que estão ali refletem esses momentos dramáticos”, diz. Isso que, até agora, o público teve acesso a apenas uma parte das obras. Que, a propósito, Fausto não gosta de chamar de arte. “Arte é uma palavra horrível para definir algo tão gigantesco.”
Serviço
Exposição Ásia: a terra, os homens, os deuses
Museu Oscar Niemeyer (R. Marechal Hermes, 999, Centro Cívico)
De terça a domingo, das 10 às 18h. Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). Às quartas, entrada gratuita
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