O fechamento do abrigo Boa Esperança, no bairro Rebouças, em Curitiba, no fim de outubro, transformou o Mercado Municipal em um grande “condomínio” improvisado. Com o fim das 247 vagas oferecidas no local, dezenas de moradores de rua passaram a usar um dos pontos turísticos mais visitados de Curitiba como local para passar a noite, complicando ainda mais uma região que sempre foi considera crítica em relação a essa população. E os próprios moradores reclamam da situação e prometem realizar um protesto em frente à Câmara Municipal nesta sexta-feira (10), a partir das 10h, em busca de soluções.
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De acordo com Carlos Merlini, um ex-pastor evangélico que hoje passa as noites no Mercado Municipal e que atua como uma espécie de síndico do local, as marquises já chegaram a abrigar 300 pessoas após o fechamento do Boa Esperança. E esse aumento vem gerando confusão. “Depois que fechou o albergue, ficou bem mais cheio. Quando chega alimentação, tem briga. Um fica empurrando o outro quando falta comida ou roupa”.
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Para a população de rua, a prefeitura quer tirá-los da região central, levando-os para abrigos em áreas mais afastadas, mas sem oferecer apoio para isso. “Querem que a gente vá para o Sítio Cercado, mas é muito longe. A gente não tem como ir para lá”, aponta Antônio**, mais um dos “condôminos” do Mercado. “Não temos dinheiro. Se for para ir de ônibus, temos que pular a catraca — e aí a gente apanha da Guarda Municipal”.
As razões para ocupar a Rua General Carneiro são várias. A distância é a principal delas, mas eles também criticam a burocracia para dormir nos albergues. Segundo eles, para passar a noite nesses espaços, é preciso de uma liberação dada em Centros POP específicos – centros de acolhimento em que a população de rua pode ter acesso a cuidados de higiene, alimentação e passar por triagem e encaminhamentos –, que nem sempre ficam próximos aos abrigos. “Se for para ir do Sítio Cercado ao Centro todos os dias para buscar isso, prefiro ficar por aqui”, afirma João**, outro morador da região.
No entanto, para a presidente da Fundação de Ação Social (FAS), Elenice Malzoni, a informação sobre a liberação dos centros não ocorre dessa forma. “Houve realmente um mal-entendido que fez com que muitas pessoas em situação de rua achassem que a liberação só poderia ser dada nos Centros em que já são vinculados, mas não é assim que funciona”, explica. Segundo ela, é possível obter a guia de acesso em qualquer um dos cinco Centros POP da cidade, incluindo uma que fica junto do abrigo no Sítio Cercado. “E nós nunca vamos mandá-los irem até lá de ônibus. Sempre que eles aceitam a abordagem, há o encaminhamento pelo próprio carro da FAS”.
Números não batem
Quem prefere ficar no Mercado Municipal no lugar de ir para um abrigo diz ainda que a superlotação nesses espaços os afasta de lá. “Se o Sítio Cercado não consegue acolher o pessoal da rua de lá mesmo, como esperam receber a gente aqui do Centro?”, questiona Antônio**. “Não vai caber todo mundo”.
E, de fato, os números não batem. Uma estimativa da própria FAS aponta que são cerca de 1,5 mil pessoas em situação de rua para apenas 611 vagas disponíveis em albergues municipais — já descontando aquelas que deixaram de existir com o fim do Boa Esperança.
Por causa disso, os “moradores” do Mercado Municipal pedem por novos espaços onde eles possam passar a noite, tomar banho e cuidar de sua higiene. E, de preferência, no Centro, já que muitos ainda preferem viver nessa região por uma série de razões. Na tentativa de pressionar a prefeitura, eles organizaram um protesto para as 10h desta sexta-feira (10) em frente à Câmara Municipal.
Para a presidente da fundação, esse é um problema que deve ser remediado em breve. Ainda que concorde que seja impossível atender toda a população de rua da cidade, ela revela que medidas serão tomadas até o fim de novembro para resolver essa questão. Segundo ela, muitas das vagas atualmente ocupadas em abrigos centrais devem ser liberadas.
Além disso, também nesse período, a FAS promete criar mais 80 leitos para quem procurar acolhimento e mais 80 a médio prazo. “Não está havendo um desmanche do serviço, mas uma nova ordem do serviço”, explica Elenice.
Problema antigo
Ainda assim, a presidente da FAS reconhece que o fechamento do Boa Esperança complicou a situação já crítica do Mercado Municipal. Segundo ela, a fundação estima um aumento de 15% no número de pessoas em situação de rua após o fim do abrigo no Rebouças. Segundo o monitoramento do órgão, há uma média de 120 pessoas pernoitando nas portas do Mercado por noite.
“Ali sempre foi um lugar difícil. Essa população vai lá mendigar bastante, em busca de algum socorro”, explica Elenice. “As pessoas saem com sacolas de frutas e outros alimentos e eles aproveitam para pedir algum tipo de ajuda, o que sempre foi um grande atrativo para irem até lá”.
Segundo comerciantes da região, essa abordagem dentro e fora dos estabelecimentos é um dos problemas mais recorrentes na região, o que se intensificou com o aumento de pessoas se abrigando no local. “Isso atrapalha muito. Os clientes se sentem incomodados e reclamam”, explica a gerente de uma padaria de frente ao Mercado Municipal, Jaqueline Pendeck. “A gente não tem medo deles, a maioria é bem tranquila, mas alguns geram um incômodo grande que traz prejuízo. Afeta o movimento”.
Outra questão levantada por quem trabalha ali é o lixo. Pryscilla Ribeiro, dona de um café na Rua General Carneiro, conta que é muito comum encontrar embalagens de marmita trazidas por igrejas e ONGs durante à noite pela calçada. “Os meus funcionários perdem muito tempo todas as manhãs arrumando tudo”, revela. “Isso sem falar do cheiro”.
De acordo com Carlos Merlini, o “síndico” do Mercado Municipal, boa parte da população que pernoita sob as marquises se preocupa com a higiene do local, colocando os restos em sacos de lixo pela equipe de limpeza da cidade. Mas não são todos que têm o mesmo cuidado.
Para a presidente da FAS, a questão do lixo torna ainda mais complicada a presença da população de rua na região, pois esses restos e a falta de banheiros podem atrair ratos, criando um problema de saúde pública. “É uma condição inapropriada para um mercado”, afirma Elenice.
Por isso, ela revela que a situação do Mercado Municipal está sendo trabalhada de maneira muito delicada antes mesmo do fechamento do Boa Esperança para tentar sanar todos esses conflitos. “A preocupação é harmonizar quem convive e trabalha no Mercado com as necessidades de quem está nas ruas”.
** Os nomes foram alterados a pedido dos próprios entrevistados.