O Centro Histórico de Curitiba nunca ouviu uma manhã como a deste sábado (21). Os relógios na torre da Catedral marcavam 8h44 quando o maestro espanhol Llorenç Barber deu o sinal para o início da execução de sua obra “Sonidos Como Colores”, partitura que escreveu para o primeiro Coro de Sinos a soar na história da cidade.
O compositor estava a 200 metros distante dali, na sacada do campanário da Igreja da Ordem, comandando a percussão simultânea dos sinos das principais igrejas da parte antiga da cidade. Além das campanas da Ordem e da Catedral, os sinos da Igreja do Rosário e Igreja Luterana do Redentor também vibraram em conjunto.
Sua esposa e parceira no projeto, a musicóloga Montserrat Palasios, ficou no campanário da Catedral. Outros 15 estudantes de música os auxiliaram na execução da peça escrita especialmente para a “abertura artística” da Bienal Internacional de Curitiba.
A ideia da composição foi ter os campanários como uma das vozes integrantes de um coro: com o tempo, andamento e notas musicais marcadas exatamente como em uma partitura.
Um manual para ouvir de olhos fechados
Antes do início da música, alguns voluntários da equipe da Bienal distribuíram uma espécie de manual com algumas sugestões dos artistas para aproveitar melhor a experiência. “É necessário antes de tudo reaprender a ouvir apenas com os ouvidos, pois ouvir não é uma variação de ver. Fechar os olhos talvez seja um bom começo”, diz o texto ditado pelo compositor. O conselho presente no manual dá a letra: imagens de vídeos e fotos não dão conta do alvoroço musical, grandioso e ao mesmo tempo impressionista de seu coro de sinos em Curitiba.
Assista um trecho da obra executada com os sinos das igrejas da Ordem, Catedral, Igreja do Rosário e Igreja Luterana do Redentor.
Outra sugestão do livreto sugeria à plateia participar seguindo seu instinto e se deixar caminhar entre as igrejas.
Esta última foi acatada pela reportagem cujo périplo começou na úmida e estreita rua Jose Bonifácio, ao lado da catedral, passando pela Galeria Júlio Moreira cuja escada desemboca no Largo da Ordem. Ali se concentraram a maior parte das dezenas de pessoas que saíram de casa para assistir o concerto. De perto do bebedouro, era possível ver Llorenç regendo sua orquestra de bronze ao soprar um arco de PVC enquanto, ao seu lado, um trompetista fazia intervenções jazzy.
A maior parte das pessoas também circulou e subiu a Dr. Claudino dos Santos em direção a Igreja do Rosário. Ali o público da Bienal se misturou com a fauna boêmia remanescente da sexta-feira, com moradores de rua que enfrentavam a manhã fria, turistas encasacados e trabalhadores pegos de surpresa. Caso de Adauto Matias, do serviço de limpeza municipal que parou para ouvir sem entender exatamente o que acontecia: “É algum casamento?”, perguntava.
Ao ouvir a explicação da perfomance artística, Matias se juntou por um minuto à plateia popular, ainda com a vassoura na mão. “Que legal, não sabia que dava pra fazer música com sino”. Em verdade, pouca gente sabia.
A ideia
Quem trouxe o projeto de Monserrat e Llorenç para abrir a Bienal foi o curador Adolfo Montejo, também espanhol, que conhece o trabalho do coro de sinos há mais de 30 anos.
“A cidade e a rua se tornam o auditório e o público é móvel. Você não fica engavetado numa cadeira de teatro ou sala de museu. O som urbano faz parte da partitura. A música bate na arquitetura e cria uma paisagem sonora. É difícil não ficar emocionadas”, disse o curador Adolfo Montejo.
É possível imaginar cada uma das igrejas como um naipe de uma orquestra como ouvi alguém falar. Ou são como as vozes de um coro como enxerga Llorenç. Para mim, pareceu que cada igreja tinha se tornado uma caixinha de música em escala gigante e outros certamente tiveram outras impressões.
Para Elian Woidelo, um dos músicos que participou do trabalho, este tipo de experiência de música “concreta ou pós-moderna” na rua é uma forma de combater o “ensurdecimento da sociedade”. “Antigamente a rotina e as interações das pessoas se davam com o cantar do galo ou a passagem do trem. Hoje em dia, a cidade não se ouve. Esta experiência resgata a escuta numa cidade muito carente de música nos espaços públicos”, disse.
Llorenç explicou que escolheu trabalhar com os sinos porque eles são “instrumentos esquecidos”. “A cultura moderna virou as costas aos sinos. Isso levou a decadência de uma parte exterior da cidade em muitos lugares o sino é o deposito de memória sônica mais importante e quando perde o sentido morre o sino. Ou por não soar ou por soar com algum mecanismo automático e impessoal que sempre faz o mesmo som miserável e feio" , diz o maestro. Para ele, a única coisa que pode salvar um instrumento esquecido da morte é a arte.
“A arte entra para salvar a cidade na rua onde as revoluções acontecem." Maestro Llorenç Barber.
Segundo o músico de 71 anos e profundos olhos azuis, a “boa notícia” é que os melhores museus e as melhores bienais de arte já entenderam há tempo que o elemento som é “matéria plástica, ainda que frágil e evanescente”, mas cheia de vida de transcendência e de tudo o que faz falta para viver melhor. “O sino é um e um emblema de salvação conjunta. Ou estamos juntos ou a arte é uma mentira”, disse.
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