A todo momento estamos gerando dados. É o site que acessamos na internet, o conteúdo que buscamos no Google, a comida que pedimos no aplicativo de entrega, o caminho que percorremos usando o GPS do smartphone. São incontáveis ações que realizamos diariamente e que, consequentemente, deixam nosso rastro, seja para empresas ou para o poder público. E, excetuando a questão da invasão de privacidade, todas essas informações podem ser usadas a nosso favor, caso a cidade em que vivemos seja capaz de interpretá-las para aprimorar os serviços e, assim, melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.
Apesar de soar simples, o uso de dados pela administração pública não é algo trivial. Cidades ao redor do mundo se debruçam sobre dados, sejam pessoais ou gerados pelo próprio poder público, e tentam tirá-los da tela do computador e levá-los para a vida real. Quanto mais informações existem, mais complexas ficam as interpretações. Em compensação, se feitas corretamente, podem servir de alicerce para a tomada de decisões.
“Até pouco tempo atrás, as decisões eram tomadas com base em achismo. Com a demanda de necessidades que há hoje, fica difícil fazer no achismo. E hoje em dia há muitas informações e dados que podem ser transformados em informações úteis para se tomar decisões. A administração pública deveria ser como uma empresa, precisa obter dados e em função desses dados direciona o serviço”, afirma o professor universitário e pós-doutor em Cidade Digital Estratégica Edson Pedro Ferlin.
Dados, entretanto, não são uma verdade absoluta. Sozinhos, sem conexões com a realidade, eles pouco ajudam. Para o especialista em tecnologias digitais e pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Lucas Girard, o caminho não é o dado em si, mas como ele é transformado em informações estruturadas e úteis. E essa questão, segundo ele, é um dos principais obstáculos que as cidades encontram, de encontrar pessoas e equipes que saibam lidar com o emaranhado de dados. “Prende-se muito ao perfil técnico, com uma visão muito estrita, que olha uma planilha no computador sem a capacidade de entender o que significa aquilo na prática. Quando pensamos numa cidade e a quantidade de fenômenos culturais e sociais que acontecem, é preciso um preparo muito grande de profissionais para trabalhar os dados”, diz.
A discussão sobre dados acaba recaindo quase que naturalmente sobre cidade inteligente ou smart city, conceito bastante difundido nos últimos anos. Para ser considerada inteligente, uma cidade deve incorporar o uso da tecnologia no processamento de planejamento, com a participação dos cidadãos, para melhorar a qualidade de vida. Uma explicação simples para algo complexo, até porque as visões são diferentes dentro de um centro urbano. O que é bom para um, não necessariamente é para o outro.
“Qualidade de vida é mais do que ter bom hospital e bom transporte. O transporte pode ser ruim, mas a vida pode ser maravilhosa. Pode não ter hospital, mas a alimentação e a saúde são muito boas. Existe uma maneira de definir o que é qualidade de vida que é muito equivocada. As pessoas têm o direito e as oportunidades de fazer o roteiro de vida que quiserem. Uma cidade efetivamente inteligente é aquela que produz oportunidades. As métricas precisam abarcar fatores mais subjetivos”, afirma Girard.
Curitiba inteligente
Curitiba tem aparecido com frequência em rankings internacionais de cidades inteligentes. No ano passado, passou a integrar a lista Smart21 Intelligent Communities de 2020 do Intelligent Community Forum (ICF) e foi finalista pela segunda vez do World Smart City Awards, organizado pela Smart City Expo World Congress. Com tanta exposição, passou inclusive a sediar a versão local do Smart City Expo — o evento deste ano foi adiado devido à pandemia do novo coronavírus. Entre vários aspectos analisados está o uso da tecnologia e como ela reflete nas políticas públicas para os cidadãos. Um ponto para Curitiba. Mesmo assim, a cidade tem a consciência de que ainda há muito para evoluir.
Os dados usados em Curitiba vêm basicamente de três fontes diferentes: os dados gerados pela própria administração, como o IPTU, os dados ativos, que são pesquisas e investigações encomendadas pela prefeitura, e os dados gerados pelo próprio usuário, notadamente por meio da Central 156. Mas para que sejam utilizados em sua plenitude, precisam de uma uniformização, algo que não ocorre hoje. “Muitos dados são produzidos na própria administração, como de IPTU, por exemplo. Temos acesso fácil a esses dados. Mas os sistemas são antigos, a coleta de informação não foi armazenada e sistematizada pensando em outras aplicações além da própria cobrança do IPTU. Outras aplicações ficam um pouco prejudicadas por causa disso, mas aos poucos vamos adaptando os sistemas ou desenvolvendo uma metodologia para interpretar aqueles dados, mesmo que não estejam no formato mais adequado”, explica o coordenador de pesquisa do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), Oscar Schmeiske.
Apesar da falta de padronização, a cidade tem lidado bem com a questão, muito devido à ideia de planejamento integrado disseminado pela administração curitibana. Com todas as secretarias trabalhando em conjunto com o Ippuc, os dados acabam sendo melhor interpretados para balizar políticas públicas e suprir as demandas da população.
Há em paralelo a isso uma preocupação latente em relação à tecnologia em si e à falta de profissionais capacitados para exercer a função de olhar a fundo e saber lidar com os milhares de dados que passam pelas planilhas de gestores diariamente. De acordo com Schmeiske, a administração pública não consegue responder rapidamente a essas questões. “A estrutura governamental é engessada e isso dificulta muita na questão tecnológica, que sempre tem alguma novidade. E tem a formação de mão de obra específica para isso. Infelizmente temos um gargalo grande nessa área. Muitos profissionais tentam se reciclar, mas não existe uma formação no mesmo nível das tecnologias disponibilizadas no mundo. Muita dessa formação sai de Curitiba e é desse profissional que estamos precisando”, avalia.
O profissional que a prefeitura busca não deve ser necessariamente um cientista de dados ou algo que se assemelhe. Ele é importante e necessário, porém o fundamental é que ele esteja inserido em um ambiente com pessoas das mais diversas formações, uma equipe que saiba olhar os dados de pontos de vista diferentes. No fim, quem ganha é a cidade.
“Há diversos profissionais que precisam estar envolvidos nesse processo, em uma equipe multidisciplinar, que analisem as cidades nos diversos aspectos”, aponta Ferlin. “É uma discussão extremamente complexa e que passa por uma questão nova de governança que pouquíssimas cidades e mesmo instituições no país e no mundo têm capacidade técnica e ética para operar”, complementa Girard.
Central 156: a base de dados curitibana
Entre as diversas fontes de dados de Curitiba, nenhuma é tão poderosa quanto a Central 156. Fundada em 1984 com o objetivo de diminuir as filas de atendimento presencial na prefeitura, tornou-se a principal conexão entre o cidadão e o poder público. É lá onde o curitibano reclama, critica, pede alguma informação ou serviço. Desde 2002, todos os atendimentos são registrados e categorizados. Tudo vai para uma imensa planilha com milhões de linhas. Claro que no montante de informações geradas a partir das ligações ou dos registros pela internet ou aplicativo há muitas que são dispensáveis. No entanto, boa parte pode indicar demandas reais que exijam não apenas uma pronta resposta, mas principalmente a elaboração de políticas públicas específicas.
Reclamações contínuas de falta de iluminação pública em uma região da cidade ou a queda constante de árvores durante temporais podem indicar padrões a serem solucionados a médio prazo e não caso a caso. Pedidos recorrentes de coleta de resíduos em algum bairro, por exemplo, também podem exigir da prefeitura uma resposta mais elaborada do que simplesmente direcionar um caminhão de lixo para o local no mesmo dia. As reclamações mais triviais podem esconder um problema prestes a explodir.
“A Central 156 cumpre um papel importante de ser instrumento de gestão para a administração pública, de alguma forma fornecer dados e indicadores para a administração pública conseguir fazer de forma mais eficiente seu planejamento”, explica o coordenador de atendimento da Central 156, Ozires de Oliveira. O desafio maior, segundo ele, é conseguir responder corretamente ao que a população está demandando e transformar isso em políticas públicas. “O nosso modelo de atuação de gestão de atendimento ao cidadão é baseado na interação do poder público e sociedade para que a gente possa subsidiar o planejamento urbano visando a transformação dos processos dentro da cidade, para melhorar qualidade de vida do cidadão”, completa.
Para que os dados da Central 156 saiam da planilha e se tornem realidade, todas as informações são repassadas mensalmente para todas as secretarias, para que possam elaborar projetos específicos. E no caso de demandas que precisam de uma pronta resposta, os dados da central podem ser visualizados em tempo real dentro do sistema da prefeitura. Por exemplo, se uma árvore caiu, a Secretaria do Meio Ambiente tem acesso imediato à informação e pode tomar as medidas adequadas sem precisar passar por outros órgãos.
Para facilitar e agilizar o atendimento, a prefeitura lançou no ano passado, em 29 de março, no aniversário de Curitiba, o aplicativo da Central 156 para smartphone. Até o fim de 2019 foram registradas 2,6 milhões de interações. Agora é possível anexar imagens à ocorrência, o que torna a ação do poder público mais assertiva e rápida, sem precisar deslocar algum servidor para o local para verificar a situação antes de tomar a medida necessária. A ideia, inclusive, é tornar a central toda mais inteligente, chegando ao ponto de desenhar a rota de um caminhão de coleta de resíduos vegetais e enviá-la para o motorista, tudo de forma automática.
Para o pesquisador da USP Lucas Girard, ouvir o cidadão é primordial para direcionar as políticas públicas. De certa forma, devolve a voz e ação que ele perdeu ao longo do tempo, quando todas as responsabilidades pelo espaço público ficaram a cargo das prefeituras e ao cidadão restou a responsabilidade somente sobre a própria casa. “É uma espécie de mapeamento coletivos dos problemas. Se não há sensores e fiscais por toda a cidade, é preciso contar com a cooperação para mapear todos os problemas. O cidadão é o dono da cidade”, diz.
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