Elenco é formado por jovens da própria comunidade, que estrearam como atores| Foto: Divulgação
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Talvez em qualquer outro filme o nome Nóis por Nóis poderia soar inadequado. Ao assumir o “erro” na grafia, o título poderia indicar condescendência e apropriação do discurso da periferia. Afinal, o cinema, arte de processos elitizados, pois caros, costuma ser feito justamente por quem não é da periferia (ou, como é ainda mais comum no Brasil, por quem não é do Sertão). A possível ausência do famigerado lugar de fala não necessariamente invalida o filme, ainda que dê pistas de como o público pode processar seus discursos. Não é este o caso em Nóis por Nóis, filme que estreia dia 12 de março nos cinemas do Paraná.

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A familiaridade com o tema, defende Aly Muritiba, um dos dois diretores, vem de sua trajetória: “eu venho da periferia do Brasil, do sertão nordestino, depois morei na periferia de São Paulo, depois fui morar na periferia de Curitiba, no Sítio Cercado, e depois trabalhei muito tempo com presidiários”. Jandir Santin, educador da comunidade Vila Sabará, foi quem teve a ideia do filme e convidou Muritiba, mais experiente, para a empreitada. Esse foi o primeiro passo para que o universo dos jovens da periferia curitibana pudesse ser visto na tela, mas longe de ser o único.

Segundo Muritiba, “quando a gente foi partir para os ensaios com o elenco, que é formado muito por, à época, atores naturais, a gente foi colocando os diálogos que eles iam transformando no roteiro. Muito do que era escrito era mudado e moldado pelos atores e atrizes e isso entrou para o roteiro dando esse tom bastante natural e coloquial para as falas”. O roteiro da dupla de cineastas temperado com a vivência real dos jovens da Vila Sabará gera um resultado que soa bastante autêntico. Essa combinação faz com que o universo simbólico daquela periferia vaze do filme para o público.

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A verossimilhança é importante para o tipo de filme que Santin e Muritiba estavam interessados em contar. O olhar panorâmico da trama acompanha esse grupo cujos dramas pessoais se interconectam na periferia. Uma está grávida do namorado que, por sua vez, não quer que uma criança seja criada como ele foi, com medo. Outro só quer promover festas com batalhas de MC e fazer filmes mostrando sua realidade. Outra só não quer confusão com o ex-namorado enquanto curte com o novo. A opressão policial, particularmente pesada sobre o corpo periférico, e a violência do tráfico e da criminalidade – que, o filme defende, se retroalimentam – funcionam com a prisão (geralmente nem tão) simbólica. A única escapatória, mesmo diante da tragédia, é a arte.

Som e imagem

Nóis por Nóis, pela sua proposta, gera alguns desafios técnicos. O que fica mais óbvio é o desenho de som, já que o roteiro incorpora muitas gírias e expressões que são específicas da periferia curitibana. O risco era o de deixar o filme impermeável, o que não acontece. “Esse deve ser meu décimo, décimo primeiro filme, e em todos eles quem fez o desenho de som foi o Alexandre Rogoski, que é um sujeito muito cuidadoso. E que teve a compreensão, desde cedo, que foi transmitida por mim e pelo Jandir, de que era importante que esse filme se comunicasse, e que esse filme se comunicasse com a galera da periferia, com a galera da quebrada”, diz Muritiba, que depois completa: “Então em cenas muito barulhentas, como a cena do baile, como a cena da festa, a gente traz o diálogo para o primeiro plano porque é importante que o espectador não perca o fio da meada. A gente não queria fazer um filme hermético, a gente queria fazer um filme que se comunicasse e nesse sentido todo o tratamento de som foi pensado para isso.”

Longa foi filmado na Vila Sabará, área considerada violenta na periferia de Curitiba| Foto: Divulgação

Outra questão que acaba chamando atenção é o visual. Santin e Muritiba evitam a estetização da periferia, no sentido de que não há uma beleza oculta que só não é percebida pelos moradores dos bairros nobres. O abandono e descuido não são maquiados, mas, ao mesmo tempo, a “feiúra” não é exaltada. E, de forma ainda mais impressionante, eles encontram enquadramentos que pela sua composição são extremamente agradáveis ao olhar (ponto de fuga central, simetria, paralelismos, enfim, noções que estamos acostumados a pensar como bonitas). Isso sem perder a dimensão social em que essas imagens estão integradas.

A periferia de Curitiba é específica, circunscrita a um tempo e espaço particulares, como lembra Muritiba. “Existe todo um imaginário acerca do que é a periferia no Brasil e esse imaginário vem das imagens produzidas pelo cinema e pela televisão retratando favelas cariocas. E quem mora em capitais do Sul do Brasil entende e sabe que a periferia do Sul do Brasil é completamente diferente”. Mostrar essa diferença entra importante para o desenvolvimento de Nóis por Nóis, tanto que era preciso “encontrar uma equivalência para a periferia curitibana e aí a gente foi encontrando maneiras de enquadrar essa periferia que tem pouco morro, que quase não tem barraco, essa periferia que tem muita gente branca, mas que tem muita pobreza também, essa periferia que é gelada, que é muito fria”.

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Violência

“É interessante pensar que o Nóis por Nóis foi escrito em 2015 e ele está sendo lançado só agora em 2020 e cinco anos depois as questões que dizem respeito à violência policial e à criminalidade na periferia estão mais agudas ainda, tornando o filme mais atual do que quando ele foi escrito”, reflete Muritiba. No filme, um dos jovens desaparece e, à medida que a trama avança, descobrimos que a solução óbvia não é a que resolve o caso. A resolução aponta, justamente, para a relação de retroalimentação entre as forças policiais e o crime organizado. No filme, porém, ainda parecia haver alguma distinção.

“É como se nós tivéssemos antevisto uma agudização da violência da periferia quando a gente escreveu o Nóis por Nóis, mas no fim das contas nem é antevisão. Isso sempre aconteceu, o que torna o cenário um pouco diferente do de 2015 é que hoje essa violência é escancarada e legitimada pelos poderes públicos”, finaliza Muritiba em uma nota amarga.