Ao analisar uma denúncia contra um homem de 48 anos acusado de integrar uma organização que praticava furtos e roubos na capital paranaense, a juíza da 1ª Vara Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, Inês Marchalek Zarpelon, atribuiu seu comportamento ao fato de ser negro. “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta”, escreveu a magistrada três vezes sobre Natan Vieira da Paz, cujo apelido é “Neguinho”, segundo o relatório da juíza.
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A sentença é de 19 junho, mas veio a público após a advogada do réu, Thayse Pozzobon assumir o caso, que estava com outro advogado, e publicar, na terça-feira (11), o trecho da decisão em suas redes sociais. “Associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo ainda latente na sociedade brasileira”, escreveu Thayse.
Ela abriu uma representação na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) e pretende acionar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para apurar a conduta da juíza. “Confesso que, no primeiro momento, foi tão assustador, que fiquei buscando algum erro de grafia, de digitação, mas acabei vendo que a juíza citou a raça em outros dois momentos da sentença”, conta Thayse. “Ela realmente utilizou a raça para fundamentar a decisão, e justamente na dosimetria da pena, que é o espaço que o juiz tem para individualizar o réu.”
“Esse pensamento já é inadmissível para qualquer pessoa, mas com um grau maior para uma magistrada, que tem um compromisso com a lei, com a sociedade e com a Constituição Federal.” Para ela, o Poder Judiciário tem o dever não somente aplicar a lei, mas também, por meio de seus julgamentos, reduzir as desigualdades.
Thayse esclarece que seu cliente autorizou a divulgação de seu nome. “Mostrei para ele esse trecho em particular e ele me questionou se uma juíza com esse pensamento poderia proferir sentenças, definindo a vida das pessoas. Eu não soube o que responder, porque, de fato, não poderia.”
Vieira da Paz foi condenado a 14 anos, 7 meses e 48 dias de prisão, mas autorizado a recorrer em liberdade. Segundo a denúncia do Ministério Público do Paraná (MP-PR), ele integrava um grupo, com seis outros homens e uma mulher, que roubava quantias em espécie, nas chamadas “saidinhas de banco”, além de celulares de pessoas que passavam pelas Praças Carlos Gomes, Rui Barbosa e Tiradentes, no Centro de Curitiba. Na denúncia, foram descritos sete casos, ocorridos entre janeiro de 2016 e julho de 2018.
Procurado pela reportagem, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) informou que a presidência da instituição encaminhará o caso à Corregedoria-Geral da Justiça e que a juíza deve ser chamada para prestar esclarecimentos. O TJ informou ainda que a magistrada não deve se manifestar fora dos autos. Já os Núcleos de Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) e de Política Criminal e Execução Penal (NUPEP) emitiram nota externando o estarrecimento e o inconformismo com o teor da sentença. E informou que uma força-tarefa analisará as condenações dos últimos 12 (doze) meses, para verificar se situações semelhantes ocorreram outras vezes.
A juíza divulgou uma nota, aqui reproduzida na íntegra:
A respeito dos fatos noticiados pela imprensa envolvendo trechos de sentença criminal por mim proferida, informo que em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor.
O racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social.
A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades.
Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender.
A frase que tem causado dubiedade quanto à existência de discriminação foi retirada de uma sentença proferida em processo de organização criminosa composta por pelo menos 09 (nove) pessoas que atuavam em praças públicas na cidade de Curitiba, praticando assaltos e furtos. Depois de investigação policial, parte da organização foi identificada e, após a instrução, todos foram condenados, independentemente de cor, em razão da prova existente nos autos.
Em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas.
A frase foi retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais de cem páginas.
Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais.
O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo.
Peço sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pag. 117), ofendi a alguém.