No último dia 1º de agosto, o garçom Dirceu Boscardin começou uma contagem regressiva. Quando o “ano invertido” terminar, Dirceu terá completado 45 anos trabalhando sem parar no Restaurante Cascatinha.
Uma das mais antiga casas em atividade na região de Santa Felicidade, o Cascatinha foi fundado em 1949, um ano antes de Dirceu nascer - ele tem 69 anos. “Quando o ano terminar, eu vejo se tenho perna para continuar ou se vou pra casa cortar a grama”, diz em tom de brincadeira.
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De sua estação de trabalho, num dos salões do restaurante, Dirceu pode ver todos os dias a casa em que nasceu, no alto da antiga pedreira ao lado da famosa queda d’água que dá nome ao bairro.
Dirceu é filho de uma das famílias mais tradicionais da região dos imigrantes italianos da cidade onde tem centenas de primos. “No tempo da minha infância, não tinha quase nada por aqui. A gente desbravava, nadava no rio, jogava bola”.
Ele conta que só virou garçom depois que uma hérnia de discos o impediu de fazer trabalho pesado em uma das muitas pedreiras que existiam na região.
Um dia depois de pedir as contas ao antigo patrão, foi apresentado ao uniforme com gravata borboleta pelo empresário Ogênio Trevisan. Nunca mais o tirou.
“A principal qualidade do bom garçom é gostar do que faz. No começo, eu não tinha tanta afinidade. Depois com o passar do tempo fui pegando gosto. Se você não tem amor no que faz não deveria ficar. Acho que vale para qualquer profissão”, filosofa.
Oficio ameaçado
A profissão que Dirceu tanto ama parece estar em xeque no atual período histórico, como tantas outras. Duas recentes pesquisas publicadas pela universidade de Oxford, na Inglaterra, o ofício de servir mesas em restaurante tem 94% de chance de ser extinto nos próximos 20 anos.
Sistemas de autoatendimento ou mesmo robôs substituiriam profissionais como Dirceu que, sempre bem-humorado, chama os clientes pelo nome e faz festinha na cabeça das crianças.
Os números da pesquisa tradicional academia britânica soam improváveis em Santa Felicidade.
O peculiar sistema de serviço comum às dezenas de restaurantes do bairro baseado na fartura de oferta de comida depende do esforço incessante de uma legião de garçons.
Os números de Santa Felicidade são grandiosos. Só a família Madalosso tem 15 operações diferentes. Segundo dados do livro Santa Felicidade: o bairro italiano de Curitiba, de Maria Fernanda Maranhão, em alguns finais de semana, até trinta mil pessoas podem frequentar os restaurantes.
O número que exige pelo 1,5 mil garçons para bem atender a clientela de acordo com as recomendações do Sebrae.
Cerca de 500 destes garçons vão participar da tradicional Corrida do Garçom de Santa Felicidade nesta segunda-feira (19) para comemorar o Dia do Garçom, que no último dia 11 de agosto.
Dirceu conta que chegou a se preparar para participar de uma nos anos 1980, mas foi “vetado pelo departamento médico na última hora”.
Muita história
Ele conta que praticamente nada mudou no serviço nas quatro décadas e meia em que atua no Cascatinha.
Os clientes começam com uma canja de miúdos ou “risoto molhado” como entrada. Depois vem o banquete completo, com salada de escarola com bacon, polenta, risoto, espaguete, lasanha, frango (prensado e a passarinho) e fígado frito.
O cardápio do Cascatinha serviu de referência para a dezena de restaurantes que proliferaram pelo bairro na sequência. A equipe do estabelecimento tem cerca de 20 garçons no fim de semana e cinco durante a semana.
Todos os cinco moram nas imediações do restaurante o que possibilita a rotina de dois turnos: das 10h às 14h30 e depois das 19h ao último cliente.
Dirceu folga às quartas e cada um dos colegas em um dos outros dias da semana. O importante é estar descansado para o final de semana, principalmente o domingo quando o trabalho “quadruplica”.
Para Dirceu, a maior mudança que percebeu em 44 anos de profissão, foi no nível de exigência dos clientes. Ele revela que o truque para lidar com clientes chatos é “armar um revezamento de garçons”. “Se a gente pega uma mesa muito xarope, vai trocando de estação”.
Com tantos anos de salão, ele conta que já viu de “tudo um pouco”. O dia mais inusitado foi uma “batalha campal” travada entre dois grupos que celebravam casamentos nos salões restaurante.
“Parecia duas torcidas de futebol. As turmas se tramaram na lenha e acabaram com as duas festas. A polícia teve que vir e fazer um cordão. Primeiro saiu uma turma e depois a outra”.
Olhando para trás, Dirceu se diz realizado. “Estou satisfeito. Tanto que estou relutando para sair. A gente já não tem mais aquele pique que tinha lá atrás. Mas isso aqui é a minha família”.