A notícia corrente de uma festa secreta de aniversário de 75 anos de Paulo Leminski me deixou alvoraçado. Aprecio o compositor que morava no poeta de Curitiba. Havia ainda a promessa da participação de seus parceiros musicais.
O fato de que tudo se daria em um evento Sofar Sounds me fez fechar questão. Nunca tinha frequentado um, mas a hora sempre chega.
Para quem não nunca ouviu falar, o Sofar (sigla em inglês para ‘songs from a room’) Sounds se define como um movimento. Nasceu em Londres, em 2009, e se espalhou pelo mundo.
Em resumo, a ideia é a mesma em todas as praças: shows ao vivo de artistas independentes em locais inusitados para um número limitado de convidados. Chegou a Curitiba em 2014.
O segredo é a alma do negócio. Local da festa é revelado apenas na antevéspera e o nome dos artistas somente na hora. Para aqueles poucos que, entre os muitos chamados nas redes sociais ou no site do projeto, forem escolhidos.
Antes, é preciso primeiro aderir às cegas. Implica pagar o ingresso sem saber quem vai cantar. Talvez ainda não tivesse ido numa das festas por lidar mal com essa ideia de pagar sem saber pelo que.
Desta vez foi diferente. E não há como negar que há certo orgulho (tolo) em receber o e-mail dizendo que você é um dos acolhidos. Além do frenesi em participar de atividade semi-clandestina. Tudo é um filão, como alguém já disse.
O preço
Enfim o que importa que ainda que tenha me perdido nos prazos, fui gentilmente aceito pela organização do Sofar. Distraídos, venceremos.
No email da confirmação me foram dadas três opções de ingresso: a entrada única a R$ 40; o pacote com acompanhante por mais R$ 40; ou qualquer das opções anteriores acrescidas de 60 pratas que me valeriam uma garrafa de vinho logo na entrada.
Foi minha opção. Em três vezes no cartão de crédito. Não fosse assim, só poderia beber chopes a R$ 10 o copo ou alguns dos gostosos drinques do cardápio do Ginger Bar, responsável pelos coquetéis e comidas no Sofar. Não cheguei a ver que tinha para comer.
Apesar do ágio, fiquei feliz com a minha garrafa de vinho chileno cujo rótulo é familiar a consumidores que compram garrafas em promoções tipo “Leve 3 e pague 2”.
Quem leu as letras miúdas (nunca leio) viu que o truque era levar de casas a própria taça, pois do contrário seria preciso comprar um copo da festa.
Comprei o meu com gosto, pois o cálice de plástico era uma espécie de meme com dois desenhos do rosto do Leminski. Um sorrindo e outro cabreiro como tradução do sentimento ambíguo dos versos do poema “Hoje tá tão bonito que até parece que vou pegar avião...” Leminski, como a maioria das pessoas sensatas, tinha medo de avião.
Segredo revelado
O endereço secreto da noite era o de um estúdio de cinema e tevê numa rua sem saída do Pilarzinho. Na verdade, do Estúdio Vieira, talvez o mais ativo de Curitiba a julgar pelo portfólio onde vê-se que as principais peças da publicidade local foram produzidas lá.
O casarão fica no topo de um dos muitos morros daquele bairro coberto de araucárias imponentes. Muitas delas fincadas nos jardins das famílias de imigrantes eslavos.
Banners com textos de Leminski decoravam os cômodos e até uma imagem impressa do poeta com dois metros de altura marcava presença no jardim de inverno
A mais famosa casa em que Leminski e Alice Ruiz viveram nos anos 1970 e 80 é ali perto, na Cruz do Pilarzinho. O endereço utópico do “guruato da marginália”, a casa de madeira com lambrequins em que o casal recebia os intelectuais da contracultura brasileira fica a uma distância de um quilômetro.
O palco dos shows foi montado no estúdio maior. Um caixote de paredes brancas de 400 metros quadrados e pé direito de seis metros.
Do teto, caia um outono de textos concretistas do “polacolocopaca”. Ao centro, no fundo, como nos altares de igreja, uma das fotos mais famosas tiradas por Dico Kremer retratava um Leminski sóbrio e circunspecto.
O público de cerca de 200 pessoas se espalhou por sofás e poltronas no salão ou mesmo por almofadas colocadas sobre pallets. Sempre há os que preferem, como eu, ficar em pé.
Caprichos e relaxos
A intimidade entre púbico e artistas em oposição a impessoalidade das casas de show tradicional, me explicaram, é a maior diferença do Sofar.
No fim das contas concluí que nunca me animei a ir em um Sofar, pois sou um velho filhote de punk mal-humorado, preconceituoso com a atmosfera hipster que o evento sempre me sugeriu. Bobagem dupla minha. Viva e deixe viver.
Assim, tive a sorte de encontrar logo de cara o poeta, tradutor, escritor e pesquisador literário Ivan Justen Santana. Com seu chapéu de Frank Sinatra e sorriso de Edgar Allan Poe.
Ninguém conhece tão bem e com tamanho senso crítico a obra de Leminski. Ivan ficou ao meu lado como um guia de museu e durante todos os shows foi contextualizando os textos com observações mordazes sobre a obra que conhece por dentro.
Ele me explicou, por exemplo, que no livro, Caprichos e Relaxos, Lemisnki recomendou por escrito que qualquer de seus poemas poderia ser musicado por quem bem quisesse. Assim, alguns dos textos tem mais de uma versão musicada.
Os shows da noite começaram pontualmente as 19h30. Filha mais velha do poeta, Áurea Leminski, foi elegante mestre de cerimônias. Ela lia um poema ou contava uma curta história antes de chamar cada convidado.
A abertura coube a jovem cantora Bruna Lucchesi que interpretou a seu modo o hit Verdura. Depois foi chamado o clã de guitarristas Paulo e Gabriel Teixeira.
Parceiro de Leminski desde o final dos anos 1960, Paulo ele é um dos heróis da guitarra da província, espécie de Keith Richards das Mercês.
Na sequência, foi a vez de Alice Ruiz. Ela leu página aberta a esmo do Catatau, obra-prima de Leminski que, por ironia, talvez seja seu texto menos lido.
O livro que o autor imaginou que fosse compreendido em 20 anos, nunca foi. Faz todo o sentido em se tratando de um cara que definia arte como a “antítese social da sociedade”
Veio bela a participação de Marinho Galera, parceiro dos mais constantes. O violão sofisticado de Galera contrasta os textos pop de Leminski que o músico leu nas folhas de um caderno desses que se compram em lojas chinesas.
Falando em músico sofisticado, foi chamado Celso Loch que contou histórias e cantou canções brilhantes que escreveu com Leminski até que houve um pequeno intervalo.
Quem já tinha terminado o vinho, precisou pensar em soluções. Muita gente se socorreu dos serviços de entrega online para comprar mais garrafas. Outros migraram para o gin-tônica.
Na segunda parte do show, Estrela Leminski assumiu o comando. Mais eloquente das mulheres da família, ela é a gestora do legado musical do pai.
A artista chamou a banda Os Pauleras para acompanhá-la, como fizera em recente turnê europeia defendendo a obra do pai. Emocionada, a caçula dos Leminski soltou o verbo:
“Eu e Áurea temos dois defeitos: além de filhas do Leminski somos também artistas. Como se não bastasse, somos também filhas de outra artista que tem também dois defeitos: é mulher e está viva. Assim, defendo que isso aqui não é uma homenagem, mas uma mulheragem...”.
Viva e se mexendo
Paulo Leminski morreu com 44 anos. Teve o ‘destino de Fernando Pessoa e do mesmo mal” como ele mesmo previu em um de seus últimos textos. Pensar nestes termos assusta sujeitos com hábitos boêmios e que também já estão no grupo do cavalo como eu.
Antes de uma das canções, Estrela observou que quando seu pai morreu a União Soviética ainda não tinha caído, nem o Muro de Berlim. Leminski não conheceu o CD e consta que viu e mexeu num computador pessoal uma única vez.
Não chegou, portanto, a experimentar a chamada pós-modernidade em flor. Ainda que a tenha previsto com muitos acertos em seus ensaios.
Impressiona, porém, como a seu tempo e modo e a despeito dos críticos, produziu obra grande em vida rápida. E como ela segue viva e em movimento trinta anos depois de sua morte. Contra meus próprios prognósticos inclusive.
Em 2013, a Cia das Letras lançou Toda Poesia, antologia poética (aquela do bigode e capa laranja) que virou best-seller nacional.
Dois anos depois, Estrela e colaboradores organizaram songbook com todas as suas canções em um belo volume que, aliás, todos os presentes recebemos no final da noite à guisa de presente.
Depois dessas duas coletâneas, intui que demoraria a ouvir falar em novas publicações e projetos ligados a Leminski. Me enganei. Nunca pararam os lançamentos. Numa rápida circulada pelo salão apurei pelo menos três projetos saindo do forno relacionados à obra de Leminski.
Gabriel Teixeira está transformando em dub as canções do álbum Cara e Coroa, do Blindagem, repleto de letras de Leminski. O parceiro Loch, prepara a pós-produção de um álbum de dez músicas chamado “Canções de Loch e Leminski”, com muitas canções inéditas.
Por sua vez, Ivan Justen me contou em sigilo (nunca conte um segredo a um jornalista) que acabara há dias verter para o inglês o romance Agora é Que São Elas, publicado em 1984.
Leminski certamente aprovaria o título Now Is The Time The Plot Thickens cujas referencias são jazz e kung fu. Espero que o editor o mantenha e publique o mais breve possível e, se rolar, me convide para o lançamento em Nova Iorque.
Na parte final do show, Estrela convidou Rogéria Holtz e Juliana Cortes para cantar algumas pérolas de seu pai e parceiros. O final foi uma apoteose amorosa dos convidados. Abraçados, todos cantaram o pequeno hino “Valeu”.
Pompa e circunstância na medida para fechar o mês do cachorro louco com a música de Leminski. Que venham as próximas. Se a terra escapar da próxima guerra, serei um dos primeiros a aderir, mesmo às cegas, pois como dizia o poeta “o último a chegar é fã do Fagner”.
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