Os moradores do complexo de 22 quadras da Vila Domitila, entre os bairros Ahú e Cabral, em Curitiba, voltaram a ser assombrados nesta semana pela possibilidade do despejo. A área onde as casas foram construídas é foco de uma disputa histórica com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), que alega ser proprietária dos terrenos da Gleba do Juvevê e que nesta terça-feira (1º) leiloa dois deles. O valor mínimo dos imóveis é de R$ 28,5 milhões. Eles serão revertidos para o pagamento do Fundo do Regime Geral da Previdência Social, que abastece os benefícios dos segurados.
Os terrenos que serão vendidos somam aproximadamente 15 mil metros quadrados. A Vila Domitila tem uma área total de 191 mil metros quadrados. O leilão público será às 10h desta terça, no auditório da Gerência Executiva do INSS em Curitiba, na rua João Negrão, no Centro. Se a área for vendida, os moradores provavelmente terão de sair de suas casas.
O leilão desta terça reavivou no advogado Estevão Pereira, 65 anos, o mesmo drama que viveu há 31 anos. Por uma liminar da Justiça a favor do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, o atual INSS), ele e a família foram despejados de casa. Dezesseis anos depois, Estevão conseguiu retornar ao lar, mas não sem a sombra de um novo despejo. Para acompanhar o processo contra o INSS, ele se formou em Direito em 2012.
“Temos escritura, temos tudo regularizado. O que vivemos aqui nesta disputa com o INSS é uma situação vergonhosa. O que contestamos é o seguinte: a Vila Domitila é particular, pertencia a Tertuliano Teixeira de Freitas. Ele nunca vendeu esse terreno para o INSS, não tem nenhum documento que comprove isso”, aponta Pereira, que mora com a esposa e criou na Vila Domitila os três filhos.
Na versão dos moradores, as Glebas do Juvevê pertenciam a Tertuliano Teixeira de Freitas no fim do século 19. Depois, foram passadas a Antonio da Ros, em 1912, que vendeu os lotes a Jorge Polysú. Na década de 60, a filha de Polysu, Mylka Polysý e o marido dela, Abdon Soares, registraram a propriedade no 2º Registro de Imóveis de Curitiba e venderam os terrenos.
Já o INSS tem outra versão. Para o instituto, uma área de 300 mil metros quadrados teria sido vendida ao governo do estado em 1909 por Eugênio Ernesto Wirmond. Em 1920, o governo do Paraná, chefiado por Caetano Munhoz da Rocha, teria leiloado a área, sendo arrematada por Carlos Franco. Em 1927, Franco teria vendido a propriedade justamente para Munhoz da Rocha. Ao obter a escritura em 1944, Munhoz da Rocha teria vendido a área de 191,4 mil metros quadrados onde está a Vila Domitila ao Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários (IAPC, órgão antecessor ao INPS e INSS). A negociação teria sido registrada no 6º Serviço de Registro de Imóveis de Curitiba.
Despejos
De acordo com Shirley Terezinha Bonfim, 56 anos, advogada da Associação dos Moradores da Vila Domitila e de casos particulares na área, pelo menos 150 residentes já deixaram a região, despejados sem qualquer indenização.
“Atualmente temos 100 moradores por aqui, todos vivendo a insegurança de ter que deixar para trás a sua história, a história de sua família. A cada leilão, a preocupação recomeça. Um terreno colado ao Terminal do Cabral já foi vendido para um proprietário particular”, conta. “Poucos moradores têm conseguido indenização. E, quando elas vêm, são irrisórias diante do que valem os terrenos. Não sabemos mais o que fazer”. A advogada já foi despejada do local, em 2002, mas retornou à residência naquele mesmo mês.
Drama similar vive o motorista Oscar Ribeiro de Castro, 58. “Temo ser despejado todos os dias. Eu já perdi 60 amigos que tiveram que deixar o bairro”, conta.
Castro comprou o terreno onde mora em 1994, ano em que o prefeito Rafael Greca regularizou a vila através do Decreto 520, em seu primeiro mandato. À época, os terrenos teriam sido legalizados em favor dos moradores, o que eles negam. Segundo o motorista, o prefeito não se envolve mais na questão. “Ele já deixou bem claro que não quer saber da Domitila”.
A situação da aposentada Crementina de Oliveira, 73, que mora com um neto, é ainda mais delicada. “Eu não tenho processo nenhum correndo na Justiça e nunca vieram me procurar. Só sei que comprei esse terreno há 30 anos e vivo na casa há 17. Eu nunca pude trabalhar. Se me despejarem daqui, o que eu vou fazer? Eu não tenho para onde ir”, desabafa a mulher, que é aposentada por invalidez.
Outra moradora, que não quis se identificar, já conseguiu a indenização na Justiça, mas o valor não corresponde aos aplicados aos imóveis da região. “É um montante irrisório. É uma batalha muito ingrata. Nós lutamos contra o INSS, a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, sendo que eles têm interesse direto na área. Não tem como uma comunidade vencer uma disputa contra esses poderes”, desabafa. “Meu pai pediu o asfalto, regularizou os encanamentos, e agora tudo vai ficar para os outros?”
O Ministério Público Federal e a Justiça Federal têm placas em alguns terrenos na Vila Domitila. Os órgãos alegam interesse nas áreas do INSS. Para os moradores, há claramente um peso decisivo nessa disputa.
“As ordens de despejo são oriundas da Justiça Federal do Paraná, embasadas em pareceres do Ministério Público Federal do Paraná, os quais têm interesse direto nas áreas. Ou seja, o órgão que julga as ações dos moradores é o mesmo que tem interesse direto na área”, afirma a advogada da Associação dos Moradores da Vila Domitila. “As medidas oriundas da Justiça Federal têm causado perpétuo estado de angústia nos moradores. Muitos conseguiram seus títulos de propriedade através de ações de Usucapião e Matrículas junto aos Cartórios de Registro de Imóveis e hoje estão sendo despejados com o cancelamento de seus respectivos títulos”.