Os esforços de preservação da música popular brasileira no século 20 têm um nome unânime entre pesquisadores e colecionadores: Leon Barg (1930-2009). Radicado em Curitiba na maior parte de sua vida, foi na capital paranaense que Barg reuniu o maior acervo particular de discos de 78 rotações de música popular brasileira do país. São cerca de 31 mil lançamentos das primeiras seis décadas dos 1900 que agora têm nova casa: o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
A estimativa do IMS é de que a coleção corresponda a 80% de toda a discografia nacional lançada no período: de artistas célebres como Carmen Miranda e Francisco Alves - a grande paixão musical de Barg - mas também de títulos pouco conhecidos de gravadoras pequenas de todas as regiões do Brasil.
É importante destacar a diferença entre os discos de 78 rotações e os discos de vinil (que funcionam a 33 rotações). Os 78, mais antigos, apesar de tamanho semelhante, eram feitos de outro material (geralmente goma-laca), armazenavam menor tempo de música e foram comercializados em larga escala até a década de 1950, quando o LP se popularizou de vez. Os 78 pegaram também duas fases de gravação musical: a mecânica, de 1902 a 1927 - com sons captados por meio de cornetas, a partir da vibração no ar, e a elétrica, de 1927 a 1964 - já com o uso de microfones. A diferença na qualidade de reprodução é enorme, mesmo nos arquivos já digitalizados.
A coordenadora de música do IMS, Bia Paes Leme, explica que a intenção da entidade é oferecer ao público o maior material para pesquisa possível, e mesmo com os 20 acervos que o instituto abriga atualmente, a discografia ainda estava longe de ser completa - é material de gente como José Ramos Tinhorão e Humberto Franceschi.
"Eles não foram colecionadores preocupados em completar o álbum de figurinhas", explica Bia. "Nós entendemos que precisávamos completar o álbum. Ao invés de recortes curatoriais, tentar ampliar ao máximo, porque a música desse período é um patrimônio nacional. Leon Barg era reconhecidamente o maior colecionador do Brasil. Admirado e amigo de todos, tão diligente e dedicado a isso que viajava o Brasil inteiro de carro em busca dos discos."
O fato de Leon buscar o melhor exemplar de cada lançamento é também um fato importante, lembrado por colegas e especialistas. "Ele trocava comigo, 10 discos por 1, porque a minha versão estava melhor", conta o pesquisador e colecionador cearense Nirez. "Quem chegou mais perto de completar essa coleção foi ele."
Entre as obras mais raras do acervo de Leon Barg, está o primeiro disco gravado pelo "Rei da Voz", Francisco Alves (com O Pé de Anjo e Fala Meu Louro), lançado em 1920, e a interpretação de Carmen Miranda para o choro Se o Samba É Moda, lançado pelo selo Brunswick.
O compositor, escritor e pesquisador carioca Sandor Buys concorda que o acervo de Barg era o maior de música popular brasileira do período, e ainda atenta para outro fato. "Não existem mais matrizes dessas gravações lançadas em 78 rotações. Muitas gravadoras queimaram para vender a peso de metal. Isso torna as coleções de discos muito importantes, porque é o registro que sobra", explica. Um dos esforços mais significativos na preservação desse material, diz, foi o do próprio Leon Barg, com a criação da gravadora Revivendo.
Os discos do acervo já foram transportados de Curitiba para a sede do IMS no Rio de Janeiro. As próximas fases englobam higienização, catalogação completa, digitalização das canções e a colocação à disposição de pesquisadores e público - trabalho previsto para iniciar em 2020.
"A operação foi inacreditável", conta Bia. "Foram três caminhões, os discos foram embalados em caixas de madeira especiais. A transportadora mandou uma equipe de seis homens, e mais três da nossa equipe foram supervisionar. Levamos seis dias para embalar. Eram caminhões novos, com uma suspensão maravilhosa (risos), sem empilhar as caixas. Agora, está aguardando um espaço para começarmos a trabalhar aqui."
Ela conta que o IMS vai colocar no ar um site chamado Discografia Brasileira. "O site está pronto", diz Bia. "Vamos colocar no ar o acervo de discos que já temos, mais as digitalizações do Leon", explica, lembrando que existem sobreposições. "Com a notícia do acervo, acredito que vamos conseguir que outras instituições colaborem, além de pequenos colecionadores. Eu mesma conheço alguns que possuem várias coisas que não temos. A ideia é construir e reunir nesse site o maior acervo de gravações de 78 rotações existente."
Gravadora Revivendo
"Leon Barg, o caçador de insucessos" - essa era a manchete do caderno de Cultura do Estado de São Paulo do dia 16 de novembro de 1988, noticiando o 16.º lançamento da gravadora Revivendo. A empresa criada por Leon Barg em Curitiba no ano anterior pretendia soprar vida no seu rico acervo de música brasileira em 78 rotações, e lançar as canções em formatos mais atuais: primeiro o LP, depois o CD. Na ocasião, cinco discos eram lançados, entre eles Dalva de Oliveira com Roberto Inglez e sua Orquestra, Emilinha Borba, e gravações inéditas em LP de Sônia Carvalho, Mário Reis e Helena Pinto de Carvalho.
"A música brasileira sempre machucou meu coração", disse Leon Barg ao jornalista Luís Antônio Giron. Desde o momento de criação da gravadora a intenção era, segundo Barg, preservar e divulgar autores e cantores pouco conhecidos do público brasileira, da música do passado. A mesma intenção se mantém nas irmãs Lais e Lilian Barg, que trabalharam com Leon em vida, e agora cuidam da transferência de uma parte do acervo para o Instituto Moreira Salles.
Nascido no Rio em 1930, Barg se mudou ainda criança para o Recife, onde foi enfeitiçado pela voz de Francisco Alves no rádio. O mosquito da música o picou, e a coleção de discos foi algo que o acompanhou a vida toda. Representante comercial, numa de suas viagens conheceu a esposa Eva, em Curitiba, para onde se mudou em 1954. Lá, adquiriu uma tradicional loja de música e no fim dos anos 1980 criou a Revivendo, trabalhos que manteve até o fim da vida em 2009 - ele morreu no mesmo Rio de Janeiro onde nasceu, em uma de suas viagens em busca de discos. A gravadora colocou no mercado mais de 70 LPs e 250 CDs, recuperando digitalmente uma parcela do acervo, e também editou dois livros: Francisco Alves - As Mil Canções do Rei da Voz (1998), de Abel Cardoso Junior, e mais recentemente, o Livro de Partituras: Carnaval (2015), organizado por Lilian a partir da coleção do pai.
Após a morte de Leon, as filhas iniciaram um esforço de preservação que agora culmina na transferência do acervo - houve especulações para distribuir as músicas comercialmente em meio digital, mas o custo financeiro foi um empecilho. Atualmente, a Revivendo atua no mercado de discos usados e ainda comercializa CDs do catálogo.
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