O Boqueirão está à frente do seu tempo. Muito antes de o ex-presidente Lula cunhar o termo República de Curitiba na Operação Lava Jato, o bairro já falava em independência. E não da cidade. Do Brasil.
A frase “O Boqueirão é o meu país” ecoa há 24 anos no quarto bairro mais populoso da cidade, com 73,1 mil habitantes, segundo o censo mais recente do IBGE, de 2010. População digna de nação, praticamente equivalente à de Andorra, principado cravado entre Espanha e França, tal e qual o Boqueirão estaria entre Curitiba e São José dos Pinhais se fosse independente.
O criador da brincadeira foi o jornalista Jean Claude Lima, 49 anos. E o fato de a frase remeter ao slogan do movimento “O Sul é o meu país” não é à toa. Meses depois do surgimento do grupo separatista, Jean foi convidado por um conhecido com quem jogava futebol a aderir à ideia de desmembrar Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul do Brasil.
“Esse cara disse que como eu era articulado, participava do movimento estudantil, eu deveria entrar no ‘Sul é o meu país’ e ajudar a expulsar os nordestinos de Curitiba”, diz. “Eu disse que só tinha um problema: eu sou nordestino. Quando falei isso, parecia que tinha aberto um buraco no chão e o cara caído lá na China”, ri o jornalista nascido no Ceará e que mora em Curitiba desde os 11 anos.
(Observação: a direção do movimento “O Sul é o meu país” sempre enfatiza que não tem caráter racista, que apenas pretende viabilizar a emancipação política e administrativa dos três estados do Sul de forma pacífica e democrática. Dia 2 de outubro, mesma data das eleições municipais, o movimento fará um plebiscito informal para tentar alcançar a aprovação de 1 milhão de pessoas. Entretanto, do ponto de vista jurídico, a divisão do país é inconstitucional).
No caminho de volta para casa, Jean começou a pensar em uma forma de rebater a versão preconceituosa do colega de futebol. Ao comentar o episódio com amigos, surgiu o bordão. “Um dos nossos amigos era do Boqueirão e sempre falava em tom debochado do bairro, que lá tudo era diferente. Aí falamos que a partir daquele momento o Boqueirão também seria um país, ele o presidente e nós os embaixadores em Curitiba”, recorda Jean.
O amigo era o gerente de marketing Glauco Machado, 44 anos. “Eu personificava o Boqueirão na turma. Ou seja, era o cara que ninguém queria dar carona depois das festas porque morava longe. E naquela época o Boqueirão era ainda mais longe”, brinca Glauco, lembrando que em 1992 o bairro não era tão integrado à cidade.
Da ideia à pratica
Primeiro o grupo estabeleceu os símbolos da nova nação. Foi redigido um manifesto, distribuído com o número de telefone da casa de Glauco. “Teve gente que ligou para saber se era verdade mesmo que a gente ia criar um país. O mais engraçado eram essas pessoas que levavam a coisa a sério”, lembra.
Depois, veio a bandeira e o mapa, com os “pontos turísticos” do bairro-nação: o quartel do Exército, a prefeitura e locais de “entretenimento” - o bar, a banca de jogo de bicho e duas casas de meretrício. Do comércio, a referência era a Casas Pernambucanas. E para dar um ar diplomático, foi posto no mapa a embaixada da Zâmbia, primeira nação-amiga que reconheceria o Boqueirão como país.
Já a fé da população do novo país ficaria dividida entre a igreja do Carmo e a mansão do Inri Cristo. “A gente nem precisou criar uma religião porque o próprio filho do Homem já morava ali”, afirma Jean, referindo-se ao líder religioso que se proclama a reencarnação de Jesus e hoje vive em Brasília.
Adesivos disputados
O mapa ficou tão bom que o grupo decidiu fazer adesivos. Primeiro, imprimiram 300 para distribuir na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e no antigo Cefet [atual Universidade Tecnológica Federal do Paraná], onde estudavam. Depois, foram aumentando até chegar a 800 unidades.
A partir daí, admitem Jean e Glauco, a coisa fugiu do controle. Numa época em que nem internet existia, a brincadeira viralizou. A tal ponto que até hoje a frase “o Boqueirão é meu país” é uma espécie de mantra dos boqueirenses quando querem demostrar orgulho por ser do bairro.
“Todo mundo queria o adesivo, gente de toda a cidade. Os donos das bancas pediram para gente imprimir mais para vender. E o bacana eram os caras que vinham contar a história como se a gente não conhecesse”, lembra Jean. “Não era fácil conseguir o adesivo, mesmo no Boqueirão. As pessoas pediam nas festas, até na missa do Carmo. Tinha que ser ‘amigo do amigo do amigo’ até chegar em mim”, enfatiza Glauco.
A procura era tanta que, hoje, nem Jean e nem Glauco têm uma cópia. “Eu vi o adesivo no vidro de um carro há uns três ou quatro anos atrás”, lembra Glauco da última vez que teve contato com a criação.
O engenheiro civil Régis Andrey Falkowski ,36 anos, é um dos poucos que possui o mapa, colado em uma pasta dos tempos de colégio guardada na casa da mãe. Ele afirma que quando estava na 6.ª série um professor pediu um trabalho sobre o movimento “O Sul é o meu país”. Da pesquisa escolar, Régis pouco se recorda. Só lembra que uns dias depois um amigo apareceu na escola com o adesivo do “Boqueirão é o meu país”.
“A piazada rachou o bico de tanto rir. E aí começaram a ir atrás do adesivo. Eu só consegui uns três anos depois porque tinha um tio que trabalhava numa gráfica. E nem sei se é da leva original”, aponta. “Virou febre mesmo. Tanto que até hoje eu falo ‘O Boqueirão é o meu país’ quando me refiro à terrinha onde cresci”, enfatiza Régis.
Já o grupo de amigos de Jean e Glauco volta e meia retornam ao assunto quando se reúnem em churrascos. “Agora já está tendo a nova geração de países: o cara que mora no Caiuá e quer criar o Caiuaquistão e outro que quer a República do Pilarzinho, cuja moeda será o Leminski”, diverte-se Jean.