Se obituários servem mesmo para celebrar a vida de quem já não vive mais, perdoem o erro grosseiro: este texto é um imenso contrassenso.
Porque Odilon Serafini Guimarães Filho segue vivo, vivíssimo até, embora tenha sido dado como morto depois que o seu coração, já cansado de tanto amor e bondade, resolveu expirar, às 9h35 do dia 9 de março.
A rigor, o médico atestou sua morte em três vias, documentadas na central de luto e com certidão em cartório. Mas meu filho Miguel, 1 ano e meio, pensa diferente: para o menino, o avô segue pulsante e faceiro. É que toda vez que vê um retrato do meu pai, o guri toca a fotografia, abre um sorriso e faz barulho de trenzinho, a brincadeira preferida dos dois.
Numa boquinha que ainda não fala, duas sílabas estouram claras: vo-vô.
Vendo a cena, não há como discordar: o velho vive, pleno e integral, dentro do coraçãozinho do menino.
E ademais, amigos, devo confessar: entre a opinião gélida de um legista ou a intuição afetuosa de uma criança, eu fico com o que pensa o piá. E é fácil entender: o doutor, todo máscaras e bisturis, procura na física a resposta para o que é transcendental; mas o menino enxerga a vida pelo coração, espia tudo pela fresta da alma.
Legistas são máquinas de atestar a tristeza. Guris são ativistas do otimismo.
Essa morte que os médicos se apressam em determinar é só a bancarrota do corpo. Acontece que a vida vai muito além de uma assembleia de órgãos, tecidos e músculos. Há a alma, o espírito, a memória. E é esta última, filha do legado e mãe da reputação, que mantém meu pai vivo. Para mim, para o Miguel e para cada um que foi impactado de alguma forma pela imensidão da sua existência.
No HC, com um tubo na boca, outro no nariz e doses cavalares de remédios, foi eleito pelo corpo clínico como o paciente mais gentil da UTI. O Chaplin que ele tanto amava na ficção, no fim, era ele na vida real: conquistava na mudez dos seus gestos. Sem falar uma palavra, sem bengala nem cartola, era reduzido à expressão de um par de olhos. E com eles, transmitia mais delicadeza e ternura que toda a poética de Rubem Braga.
Antes de chegar ao hospital, porém, foi farto de verbo e dono das maiores histórias. Bares, comícios, reuniões de condomínio, todos paravam para ver, ouvir e dar passagem às suas anedotas.
Inventor da ficção, me seduziu desde cedo pelo mundo de estranhas narrativas. Transformava histórias banais de todo dia em incríveis epopeias. Enquanto outros pais respondiam com sins e nãos, o meu trazia metáforas poderosas. Ia sempre pelo caminho mais longo, cheio de sabor e engenho. Um Italo Calvino feito em casa, um Victor Hugo ocasional.
Os ensinamentos vinham na forma de letras do Chico. As lições da juventude apareciam em frases do Millôr. No Couto Pereira, me fazia ver Pelé e Garrincha no futebol de Claudiomiro e Ademir Alcântara.
Eram tantas histórias que ele próprio resolveu patrocinar algumas. Foi mecenas da cinematografia. Nos anos 80, trouxe a sétima arte para dentro das casas dos curitibanos. Começou com um vídeo clube, que entregava fitas mediante encomenda telefônica. Depois virou uma locadora. Uma, não – treze. Foram 13 lojas Video Show. O cinema democratizado. Fundou um fabulário cultural riquíssimo, com mitos, lendas, aventuras e romances sendo contados a esmo pelos videocassetes da cidade.
Odilon Serafini Guimarães Filho, que os médicos insistem em dizer que está morto, segue vivo na memória de muitas multidões. E seguirá assim sempre que alguém contar um causo, disser um chiste, ler um livro, ver um filme. Porque onde houver uma grande história, ali estará também o meu pai, o maior contador que já existiu.
Vida longa, Degas!
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