“Não estamos flexibilizando nada”, disse a secretária da Saúde de Curitiba ao anunciar a flexibilização das medidas de controle da pandemia de coronavírus na cidade. Neste ano de 2020, a retórica dos políticos ganhou uma nova dimensão: a de negar com palavras aquilo que as próprias ações (e mesmo as palavras escritas) afirmam. A “não flexibilização” de Márcia Huçulak se equivale à “não quarentena” no anúncio da quarentena pelo governador Ratinho Junior semanas atrás.
Neguem ou não os políticos em seus discursos, não se pode ignorar os fatos. Em Curitiba, o tal “decreto laranja” cada vez que se modifica ganha novos matizes em sua cor. Da primeira vez que foi anunciado, já foi abrindo exceção para o funcionamento dos shoppings. O desta terça amplia o horário de atendimento do comércio de rua para até as 18 horas. É laranja, mas dependendo do ângulo de visão é mais amarelo ou quase esbranquiçado.
Não se pode negar que é difícil decidir manter ou não medidas mais ou menos restritivas. Afinal, desde que o primeiro caso de coronavírus foi registrado no Paraná, pouco se sabe sobre a real eficácia de ações como a restrição no horário do comércio. É certo que havendo menos contato entre pessoas o vírus circula menos. Mas daí a garantir que menos gente se contamina porque os supermercados não abrem aos domingos (mas sim de segunda a sábado) enquanto o transporte público continua ativo diariamente, por exemplo, é outra coisa.
Vejamos detalhes das novas restrições anunciadas pela prefeitura de Curitiba: é proibido frequentar parques e praças esportivas, a céu aberto, mas academias de ginásticas estão abertas (de segunda a sábado). Restaurantes de shoppings podem operar aos finais de semana por delivery, mas padarias dentro de supermercados devem fechar totalmente aos domingos. Feiras livres podem funcionar dias de semana, mas não aos fins de semana. Clubes esportivos permanecem fechados, mas academias e salões de beleza dentro deles, não. É vedada a prática de esporte coletivo, mas o campeonato paranaense de futebol é uma exceção.
É difícil enxergar a lógica que rege as decisões da prefeitura de abrir ou fechar esta ou aquela atividade e restringir outras.
O que é evidente, e isso vem desde antes deste último decreto, é que a responsabilidade sobre o controle da pandemia parece ter sido transferida senão exclusiva, prioritariamente à população. “Temos de fazer parte de um pacto de responsabilidade, entre município, empresários e a sociedade”, disse a secretária Huçulak.
É certo que nenhuma medida é efetiva sem que as pessoas aceitem respeitar as regras. E isso pode vir pela simples conscientização como pelo endurecimento da fiscalização. Mas aí o município parece ter jogado a toalha: “A prefeitura tem atuado, tem multado e tem agido, mas temos nossas limitações”, afirmou a secretária. O resultado dessa política qualquer um vê: mesmo durante os períodos mais restritivos, qualquer atividade mais distante do Centro (e do Centro Cívico) funcionou conforme a conveniência dos indivíduos. Parques e praças, ainda que “fechados”, continuam sendo frequentados em dias de sol. A máscara é obrigatória, mas usa quem quer.
Cada novo decreto restritivo atinge apenas os grupos de empresários e prestadores de serviços aquiescentes à lei. Ou melhor: aqueles que podem atender a lei. Afinal, quantos exemplos vimos nas últimas semanas de comerciantes que, desesperados pela iminência de fechar suas portas para sempre, abriam para atendimento mesmo havendo norma em contrário?
A fragilidade nos argumentos dos gestores públicos para defender suas próprias decisões é tal que o prefeito Rafael Greca desapareceu das lives diárias sobre a evolução do coronavírus na cidade
Já os decretos de flexibilização, como o desta terça, beneficiam prioritariamente setores com maior capacidade de articulação política. Ou existe alguma explicação melhor para o afrouxamento das regras quando a curva de contaminação, mortes e ocupação de UTIs é a mais acentuada desde sempre? São razões econômicas? Preservação de empregos? Quais indicadores a prefeitura usa para basear essas decisões?
A fragilidade nos argumentos dos gestores públicos para defender suas próprias decisões é tal que, não à toa, o prefeito Rafael Greca desapareceu das lives diárias sobre a evolução do coronavírus na cidade, franqueando o anúncio de novidades a subalternos. Talvez o risco de se adotar medidas impopulares ou outras que possam resultar na piora do quadro epidêmico tenha pesado para o prefeito, que deverá colocar sua popularidade à prova nas próximas eleições.
A flexibilização do decreto laranja desta terça, afinal, é apenas mais uma mostra de que, neste momento, ao invés de responder à altura da complexidade do combate a essa terrível doença, o governo municipal faz de sua parte quase que um mero reforço para que as pessoas fiquem em casa e lavem suas mãos. Enquanto os próprios governantes, como Pôncio Pilatos, lavam suas mãos para as consequências de suas medidas de difícil compreensão.
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