Quem ouvisse o seu Thadeu planejando a próxima viagem de pescaria, ou contando as conquistas da última, não teria como adivinhar que toda aquela animação já somava 94 anos de sabedoria. Aposentado, o pintor era a memória viva de uma profissão praticamente extinta: calígrafo e pintor de anúncios, cartazes publicitários e de cinema, o precursor do photoshop.
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Há alguns dias, ele andava meio tristonho: os nove filhos, 20 netos e 16 bisnetos evitavam as visitas, por conta da nova doença que circulava por aí. Com a grande família de olho para que ele sossegasse em casa, ele tinha ainda a companheira Luíza, de 75 anos, e as telas que ele gostava de pintar como hobby – pinheiros e lagos eram os temas preferidos. Na televisão, não passava mais o futebol que ele tanto gostava de assistir.
Thadeu Wojciechowski Filho não era mais um garoto, e com o avanço da idade, vieram também os problemas de saúde. A insuficiência cardíaca, que já era companheira de anos e, mais recentemente, o mieloma, um tipo de câncer sério, mas tratável. Apesar dos diagnósticos, ele vivia a vida normalmente, lúcido, ativo, viajando e seguindo à risca os tratamentos indicados pelos médicos – alguns deles, da própria família.
No dia 23 de março, no entanto, uma alta na pressão sanguínea do apesentado fez a companheira chamar o atendimento médico, que o encaminhou ao hospital. Passou uns dias em observação, mas não encontraram nada de diferente. Poderia ser efeito colateral da quimioterapia feita naquele mês. No dia 25 ele já estava de volta ao lar. Ninguém sabia ainda, mas, na volta, ele trouxe junto também o vírus.
No dia 31, o advogado Fabiano Araujo, um dos netos, decidiu levar frutas para o avô. “Ele andava reclamando que a gente não visitava mais e que, quando levavam frutas, não eram as que ele gostava”, lembra. Naqueles dias, Fabiano já estava trabalhando de casa, evitando sair, e tomou todos os cuidados ao escolher as frutas que levaria. Higienizou todas elas antes de levar, colocou uma máscara e foi visitar aquele que era um de seus melhores amigos.
“Eu era um dos companheiros de pescaria do meu vô, nossa relação era muito próxima, de amigos mesmo. Ele era um elo entre eu e outros cinco primos, nos passou o gosto pela pescaria e sempre fazíamos isso juntos. Nos falávamos com frequência e era impossível não querer vê-lo.”, afirma Fabiano.
O avô, sempre ativo, naquele dia estava um pouco cansado e tinha chegado a tossir um pouco durante a noite. O medo do contato, tão perigoso para os idosos em tempos de coronavírus, fez a conversa não durar muito mais do que 15 minutos, um pouco de longe, sem o beijo e o abraço de sempre. Nenhum dos dois sabia que aquele momento era uma despedida.
Isso porque no dia 1º de abril, Thadeu foi hospitalizado. Dessa vez, por conta dos sintomas de gripe. Como a saúde já não tinha a melhor ficha, ele chegou ao hospital e já foi ficando, isolado, por precaução. O exame para o coronavírus foi coletado e agora era esperar.
O quadro de saúde, no entanto, piorou rapidamente. Junto com o diagnóstico positivo para o coronavírus, Thadeu foi sedado e entubado. Como ele já tinha outros problemas de saúde, o tratamento era limitado, pois o coração não podia aguentar certos métodos ou medicamentos. Sem chances para visitas ou despedidas, ele partiu no dia 6 de abril, como a segunda vítima da Covid-19 em Curitiba.
“É uma morte muito fria. Muito rápida”. É assim que o neto resume o que aconteceu. “Por mais que a gente tivesse consciência da idade e da saúde do meu vô, e soubesse que o câncer poderia levá-lo, ele já tinha superado tantas situações de saúde alarmantes pra idade dele, que brincávamos: ele vai enganar a morte mais uma vez. A gente nunca está realmente preparado pra isso”.
O corpo foi reconhecido pelo genro médico, pai de Fabiano. Não houve velório, o caixão foi lacrado e levado ao cemitério. Lá, o enterro não durou nem dez minutos, acompanhado por pouquíssimos familiares.
A pouca presença era não apenas por respeito às medidas impostas pelo poder público para evitar aglomerações, como também um reflexo da preocupação com o resto da família: assim como o neto Fabiano, parte dos nove filhos de Thadeu, que também visitaram o idoso entre o dia 25 de março e o dia 1º de abril, também estavam com suspeita da Covid-19.
Sem despedidas
Luíza Fuji, a companheira com quem Thadeu morava há anos, nem mesmo soube da morte do grande amigo. Um dia antes de ele falecer, ela também foi internada e teve que ser sedada por conta das complicações respiratórias do coronavírus. Faleceu no dia 20 de abril, depois de uma longa luta na Unidade de Terapia Intensiva.
Entre os filhos de Thadeu, todos na faixa dos 60, 70 anos, muitos começaram a apresentar sintomas de gripe também. “O que mais deixa a gente confuso com essa doença é como ela pode ser tão diferente pra cada um. Ela levou meu avô em poucos dias, mas meus tios, vários deles fumantes, cardíacos... nenhum deles teve grandes complicações”, conta o advogado.
Para os tios, além da tristeza de perder o patriarca, somente dor de cabeça, cansaço e coriza. Todos se isolaram das famílias o quanto puderam. Todos já se recuperaram.
O próprio Fabiano, ainda que não tenha apresentado nenhum sintoma, decidiu se isolar da esposa Cínthia e da filha Marcela, de 4 anos, logo que saiu o diagnóstico do avô: foi uma boa ideia, pois o resultado, que saiu no dia 8, também foi positivo. Não há como saber se foi do avô que ele pegou, mas as datas dos diagnósticos e o contágios dos demais familiares levam os médicos a dizerem que foi isso mesmo.
“Eu peguei meu computador e alguns livros e me mudei para o quarto de hóspedes. Tenho sorte de morar num lugar grande, tinha até o meu próprio banheiro”, conta. A filha Marcela, muito esperta, já tinha entendido que o “bisa” agora era uma estrela, igual ao Rei Leão. Sabia também que visitar os avós não estava permitido, por causa do bichinho que era perigoso para eles. Ainda assim, bateu à porta do quarto do pai algumas vezes, e teve os pedidos de abraço recusados.
A esposa testou e deu negativo. “Não sabemos dizer se é um alívio ou uma preocupação, não sabemos dizer com certeza se eu já tenho imunidade, ou mesmo se o negativo dela é um falso negativo. Tudo é muito incerto nessa doença”, diz Fabiano.
“Não sei o que tirar de lição disso. Espero só que as pessoas cuidem umas das outras, porque podem estar assintomáticas e acabarem passando a doença pra quem vai desenvolver sintomas graves. É muito difícil passar por isso, o meu avô era realmente um dos meus melhores amigos”.
Assim como as Thadeu e Luíza, a Covid-19 já levou mais de 15 outras vidas em Curitiba, mais de 70 no Paraná e milhares no Brasil. Atualmente, em todo o estado, cerca de 90 pessoas estão internadas em Unidades de Terapia Intensiva com diagnóstico de coronavírus, em isolamento e sem direito a visitas.
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