A curitibana Petriu tinha pouco mais de 20 anos quando ganhou de seu pai uma galeria de arte. Não era, nem é, um presente comum. Uma bicicleta, por exemplo. Àquela altura de 1959, moças bem-nascidas costumavam ser mimadas com anéis solitários de brilhante ou com crédito liberado para esbanjar na perfumaria “Lá no Luhm”, a mais fina da cidade.
No caso de Eugênia – musicista da Escola de Belas Artes – cairia melhor um piano Essenfelder recém-saído da fábrica, ali na Rua Campos Sales do Juvevê. Daí a estranheza da galeria a ela dada, com laços de fita, e ainda por cima uma galeria chamada de “Cocaco” – nome que parecia saído de um manifesto antropofágico de Oswald de Andrade.
O endereço, devotado às invencionices pós-Semana de 22, não era a rigor um liceu onde as elites cafeeiras e industriais gostariam de ver suas filhas, talhadas para frequentar os salões da primavera do Juventus, Concórdia ou Curitibano. Dono de uma fábrica de móveis, o ucraniano Pedro Kuratcz ou não se via como parte da nata local, ou achava que sua menina merecia algo mais do que solfejar oito horas por dia antes de trocar alianças na Catedral.
Uma terceira hipótese é de que teria visto na tal Cocaco um bom negócio para a venda de molduras, na qual gente de posses pudesse escolher um paspatour digno das paisagens de pinheiros que decoravam os salões de chá. O fato é que Eugênia não só aceitou o regalo como fez dele sua razão de viver. Jogou o feltro em cima do teclado do piano e se mandou para a Rua Ébano Pereira, 52, mais bem disposta que uma atacadista de varênekes.
Foi seu primeiro e único emprego. Mesmo tendo mais ralado que lucrado, pode-se dizer que obteve tamanho êxito que não tardou em ficar conhecida como a “Eugênia da Cocaco”, unha e carne com a galeria de arte que colocou Curitiba no mapa da modernidade. Quem sabe da história confirma que não há exagero nenhum nessa afirmativa. Fosse essa saga contada por Laurentino Gomes, ganharia como subtítulo: “Como uma pianista inquieta, dona de uma sala de exposições minúscula, tirou o cheiro de naftalina da cultura paranaense”.
Os fatos. Em sua primeira dentição, quatro anos antes de Kuratcz arrematar a Cocaco, o local foi uma “loja de fazer quadros”, pertencente a Ennio Marques Ferreira e a Alberto Nunes de Mattos. Ennio faria carreira como museólogo, mas àquela altura ciscava no terreno das artes plásticas – não propriamente as que se ocupavam em retratar paisagens bucólicas de Morretes. Em 1957, Ennio dá um salto triplo mortal: troca de sócio – sai Alberto e entra Manoel Furtado – e rebatiza a molduraria com uma palavra sonora e gostosa (“cocaco”), que encontrou escrita no cabo de uma ferramenta alemã – fartas por aqui na era da dinastia Hauer. Por fim, chama para a inauguração ninguém menos do que incendiário Loio Pérsio, um pintor tão avesso à província que causa surpresa que dom Manoel D’Elboux não o tenha excomungado antes mesmo de os canapés serem servidos.
O fato é que, à revelia de suas dimensões nanicas, a Cocaco virou o “encontro marcado” de uma geração. “Se chegasse a 70 metros quadrados seria muito”, conta o ex-diretor do Teatro Guaíra Constantino Viaro, um dos muitos a serem iniciados no salão da galeria, acanhada e mais apinhada de gente que um pub de Varsóvia. Ali, não havia aquela distância regulamentar entre os cotovelos, tão apreciada pelos curitibanos. Conta-se que em noites de vernissage a lotação era tamanha que restava o consolo de encostar a barriga no balcão de um bar pé-sujo, do outro lado da rua, de onde se podia ver o entra e sai de gente no estabelecimento.
Daí o espanto, por certo, quando o local ficou sob nova direção, passando às mãos de uma jovem curitibana de nome Eugênia, rosada como uma pintura flamenga, olhos azuis padrão “desacato”, saias milimetricamente plissadas e então mais interessada nas sinfonias de Beethoven que no expressionismo de Jackson Pollock. Parecia ser o passaporte da Cocaco para a caretice, só que não.
Eugênia foi seduzida por aquele grupo de pintores, gravadores, escultores e críticos cuja espontaneidade contrastava com a sua turma, a da música erudita. Recíproca verdadeira. A patota do cavalete se rendeu à guria cheia de energia, que preparava cada exposição com mesuras, como se Grace de Mônaco fosse passar pela Boca Maldita, pronta para dar uma esticada até a Ébano Pereira. Bom, caso por milagre acontecesse, seria ofuscada pela beleza de Elisabeth e Ângela Vasconcelos, duas beldades daqueles tempos que batiam ponto na Cocaco. Curitiba era uma festa.
Mesmo que Eugênia não fosse uma unanimidade, difícil quem não reconheça que graças à eletricidade dessa mulher a capital se conectou com os circuitos de artes visuais, “para além do mata-burros de Registro”, como se dizia. Até hoje, passada dos 80 anos, seu turbilhão de ideias e sinapses é capaz de provocar queda de luz na Copel. O disco rígido de Eugênia tem memória infinita. É capaz de citar mês e ano de uma mostra, gargalhar de uma bobagem qualquer ocorrida, sei lá, em 1968; descrever algumas das obras e ainda comentar o menu – do qual guarda as notas fiscais.
À revelia de suas dimensões nanicas, a Cocaco virou o “encontro marcado” de uma geração
Em caso de dúvida, recorre às pastas e às caixas douradas nas quais catalogou toda a trajetória da Cocaco, um refresco para os historiadores que venham a se interessar pelo assunto. Estão no acervo as matérias publicadas na imprensa, os catálogos e – delícia das delícias – cartazes em que os presentes às aberturas assinavam seus nomes, alguns deles já com mão abobada pelo vinho branco. Pense num artista importante do Paraná? Pois se não passou por lá, não existiu.
A lista de episódios saborosos ocorridos na Cocaco é tão extensa – e Eugênia sabe contá-los com tal colorido – que lhe devia ser dado um microfone, para que o fizesse em praça pública. Teria plateia cativa. Sua fala passa por crônicas de época – a exemplo da afluência à galeria de meninas do Colégio Divina Providência, ali perto, não propriamente interessadas em pop art. Vinham com a legítima intenção de namorar – o Juarez Machado, de preferência. Catarinense radicado em Curitiba, o pintor era então uma figurinha da galeria, dali saído para estrear um quadro no Fantástico, em 1973.
Há nos relatos de Petriu episódios fundadores, como a primeira exposição de Ida Hannemann de Campos, em 1959; e a última do mestre Guido Viaro, em 1971. Ele morreria logo depois da mostra, a cuja abertura ameaçou não ir. Foi – e, a contar pelas memórias da galerista, curtiu. Até porque curtir era a palavra de ordem. Mais? Meganhas da Polícia Federal baixavam na área, doidos para botar a mão no cangote de esquerdistas como Alcy Xavier, habitué da Cocaco. Os dias eram assim.
De álbum de retratos da galeria faz parte a foto de uma excursão de artistas para a Bienal de 1961. O ônibus parece um daqueles da Viação Cometa – platinados. Caso capotasse na estrada, mataria três gerações de criadores paranaenses – de Kurt Freysleben, passando por Helena Wong e o genial João Osório Brzezinski. Estava todo mundo a bordo – e assim permaneceu até 1993, quando fechou as portas da sede que funcionava, então, na Rua Comendador Araújo.
Tudo bem, Poty Lazzarotto não estava, mas pelo jeito se mordia de vontade. Vivia no Rio de Janeiro, com Célia, e se correspondia com Eugênia e Demétrio – marido dela e parceiro na Cocaco. Só as cartas trocadas entre os casais dariam um livro. O tímido Poty se sentia em casa com os amigos e lhes fazia longas visitas. De longe, mandava mensagens divertidas, às vezes maledicentes, não raro desenhadas – incluindo perfis ligeiros da própria Eugênia, retratada esguia e soberana como uma madre superiora.
Ao ouvi-la falar da intimidade que desfrutou com um dos ilustradores brasileiros do século, assim como de todos os bambas da segunda metade do século 20 com os quais teve parte, dá para entender por que deixou seu piano entregue aos cupins. Não seria nem doida de fazer o contrário – um presente é para toda a vida.
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