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Valores culturais

A batalha do self-made man contra o “filho nobre”

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Veja as diferenças entre Brasil e Estados Unidos na cobrança de imposto sobre herança |

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Veja as diferenças entre Brasil e Estados Unidos na cobrança de imposto sobre herança

Foi o político norte-americano Benjamin Franklin quem popularizou a ideia de que só há duas coisas inevitáveis na vida: a morte e os impostos. E, justamente quando essas duas realidades se encontram – na hora de pagar o imposto sobre a herança –, a tributação revela diferenças culturais entre o Brasil e os Estados Unidos, principalmente no modo como cada povo se relaciona com a riqueza.

"Os norte-americanos têm um dogma: a riqueza é fruto do trabalho", define o antropólogo Ro­ber­­­­­to DaMatta, que viveu nos Estados Unidos por cerca de duas décadas e escreveu, entre outros livros, Tocquevilleanas – Notícias da América. Esta noção é derivada das ideias de John Locke, filósofo inglês que fazia muito sucesso entre os chamados "pais fundadores" dos Estados Unidos. E a valorização do self-made man, a pessoa que prosperou pelos próprios méritos, se reflete nos números. Há 15 anos, Thomas Stanley e William Danko publicaram, em The millionaire next door (publicado no Brasil como O milionário mora ao lado), um perfil dos endinheirados norte-americanos. Eles descobriram que menos de 20% deles haviam herdado mais que 10% de sua fortuna. A consultoria Capgemini mapeia todo ano os chamados "indivíduos de alto patrimônio líquido" (HNWI, na sigla em inglês: pessoas que têm pelo menos US$ 1 milhão, tirando a casa onde moram). Segundo os dados de 2010, apenas 16% da fortuna típica de um HNWI veio por herança. A maior parte, 47%, é resultado da administração de negócios próprios. No relatório de 2011, a Capgemini não atualizou estas informações.

Em uma sociedade que valoriza o enriquecimento pelo próprio esforço, uma tributação forte sobre a herança (veja quadro nesta página) faz sentido e se torna um estímulo para que as pessoas procurem criar patrimônio, em vez de esperar uma herança polpuda. "Entre as várias imagens mentais que temos dos americanos, existe aquela do menininho que monta a banquinha de limonada na frente de casa para conseguir seus primeiros trocados; a versão moderna do menininho é o adolescente que inventa na garagem a última novidade do mundo da tecnologia", descreve DaMatta. A personificação atual do self-made man, acrescenta o antropólogo, só podia mesmo ser Steve Jobs.

Família é tudo

Já no Brasil, e em outros países latinos, vigora a noção de que o pai junta uma fortuna para deixá-la aos filhos, e por isso o Fisco deixa a herança quase intocada. "Nós funcionamos na lógica do ‘tudo que é meu é seu’", diz DaMatta, citando a frase que o pai diz ao filho mais velho na parábola evangélica do filho pródigo. "Imagine se o Brasil passasse a adotar o modelo americano de tributação da herança. Daria revolta popular", brinca o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, para quem todo sistema tributário carrega fatores culturais.

Quem passa a vida juntando dinheiro e pensando "quero que meus filhos tenham uma vida melhor que a que eu tive" certamente vê um pai norte-americano rico, que bota o filho para fritar batatas fritas na lanchonete assim que completa 18 anos, como o ser mais cruel do planeta. No entanto, o pai gringo pensa igual ao brasileiro – a diferença é que, no Brasil, o país do "você sabe com quem está falando?" (na definição do próprio DaMatta), o filho conquista uma vantagem competitiva na sociedade se já entrar nela com dinheiro no bolso e for o segundo elemento do famoso ditado "pai rico, filho nobre, neto pobre"; nos Estados Unidos, o país do "quem você pensa que é?", o pai dá ao filho as ferramentas para o sucesso ao forçá-lo a se preparar para conquistar seu lugar. Por isso, Stanley e Danko também perceberam que o milionário norte-americano médio não gosta muito de ostentação – as pirações de uma Paris Hilton são exceções à regra. DaMatta confirma a observação. "Quando eu estudava em Harvard, os herdeiros ricos às vezes se vestiam pior que eu", lembra.

Nem Maciel nem DaMatta consideram justo apontar uma maneira melhor ou pior de se relacionar com a fortuna. "Cada um tem suas vantagens. É ótimo mostrar que o sucesso exige merecimento, que você pode ser um modelo para a sociedade trabalhando duro. Mas também é bom ver laços de família mais fortalecidos, como eu mesmo tenho com meus filhos", compara o antropólogo.

Contestação

Ironicamente, as mesmas ideias de Locke usadas para justificar a exaltação do self-made man – que, por sua vez, justificam a grande tributação sobre a herança – também servem aos adversários da cobrança, aponta o antropólogo Stephen Gudeman, professor da Universidade de Minnesota e autor de The Anthropology of Economy. "Se é o trabalho individual que gera riqueza, então apenas o indivíduo tem o direito de decidir o que fazer com ela, e não o Estado. Por esse ângulo, o imposto sobre herança é uma violação desse direito", explica.

Os republicanos norte-americanos – normalmente avessos a altos impostos, seja quais forem – chegaram a apelidar o imposto sobre herança de "death tax", ou "imposto da morte", na tentativa de colocar na cobrança uma carga negativa. Por enquanto, conseguiram reduções temporárias na cobrança. No entanto, eles seguem sozinhos nesta briga. Para DaMatta, nem a crescente participação de latinos na população norte-americana deve causar grandes abalos na filosofia tributária. "É mais fácil que eles se acostumem e passem a pensar como o anglo-saxão, abandonando o ‘o que é meu é seu’", prevê.

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