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Desde que os primeiros detalhes do Renda Brasil começaram a vazar, em junho, o abono salarial sempre figurou entre os programas que poderiam ser encerrados e ter a verba remanejada para bancar a nova ação. Mas, apenas nesta última semana a questão parece ter virado um problema para o presidente Jair Bolsonaro, que suspendeu as discussões e citou o abono como um dos programas que não deveria ser tocado.
Apesar da proteção presidencial, o abono salarial é considerado mal focalizado e pouco efetivo para a redução da pobreza e da desigualdade de renda do trabalho por diversos especialistas, inclusive por órgãos do próprio governo.
Bolsonaro argumentou que não poderia tirar recursos dos mais pobres para distribuí-los aos paupérrimos, e tratou especificamente do abono. “Por exemplo, a questão do abono para quem ganha até dois salários mínimos, que seria como um décimo quarto salário. Não podemos tirar isso de 12 milhões de pessoas para dar a um Bolsa Família, um Renda Brasil, seja lá o que for o nome do programa”, declarou durante uma viagem para Minhas Gerais.
No ano passado, o governo federal estimava atender até 23,6 milhões de pessoas com o pagamento do abono referente aos meses trabalhados em 2019. Para ter acesso ao benefício, é preciso ter trabalhado ao menos 30 dias com a carteira assinada, com remuneração média de até dois salários mínimos. O trabalhador recebe um valor proporcional à quantidade de meses em que passou ocupado naquele ano, e pode chegar a um salário mínimo extra.
É por já ser voltado a quem tem acesso ao mercado de trabalho formal que a concessão do abono é questionada. O benefício é voltado a pessoas que estão ocupadas, ainda que não tenham rendimentos altos, têm direitos trabalhistas garantidos (como o 13.º salário anual) e foram beneficiadas pelos recentes aumentos do salário mínimo – que, ao contrário do Bolsa Família, tem reajuste todo ano.
Na outra ponta, os trabalhadores informais, que são mais sensíveis a variações da atividade econômica, têm rendimento médio mais baixo que o dos formais, não têm direitos trabalhistas e nem sempre se enquadram nos critérios de programas como o Bolsa Família.
A equipe de Paulo Guedes é pressionada desde o ano passado para apresentar uma proposta de agenda social para se tornar a marca da gestão Bolsonaro, e o sucesso do auxílio emergencial amplificou essa necessidade. A questão é que mexer em ações já consolidadas, como o abono salarial, é uma questão espinhosa, especialmente no âmbito político. Enquanto presidente, Dilma Rousseff (PT) tentou restringir o benefício, mas no Congresso conseguiu apenas uma parte do que planejava. O próprio governo Bolsonaro propôs limitar o recebimento do abono, durante a reforma da Previdência, mas o benefício saiu ileso.
Abono salarial não chega aos mais pobres
O abono salarial entrou no pacote de ações que seriam unidas ao Bolsa Família para formar o Renda Brasil por ser considerado pouco eficiente ao combate à pobreza. Ainda que ele chegue a pessoas que ganhem no máximo dois salários mínimos, o fato é que os mais pobres no Brasil são muito mais pobres que isso.
O veto de Bolsonaro a mexer no programa atrapalhou e muito os planos de Paulo Guedes. Ainda que a equipe estivesse estudando como ter acesso a esses recursos já para 2021 – porque os benefícios relativos a 2020 ainda estariam sendo pagos –, ele responderia pela maior parte do remanejamento de orçamento para viabilizar o novo programa.
No ano passado, o Tesouro Nacional desembolsou R$ 17,6 bilhões com os pagamentos do abono salarial. Sem cortar essa e outras ações, não será possível bancar o Renda Brasil sem estourar o teto de gastos.
Ex-ministro da Fazenda do governo Dilma e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre/FGV), Nelson Barbosa lembra que o abono salarial foi criado ainda durante o governo militar, na década de 1970.
“A ideia original do abono salarial era conceder benefício social a trabalhadores de baixa renda, na forma de um salário mínimo. Naquela época o salário mínimo era bem menor do que hoje e ainda não havia outros programas sociais como o Bolsa Família e o seguro desemprego para auxiliar trabalhadores em dificuldade”, escreveu em artigo publicado no blog do Ibre durante a discussão da reforma da Previdência, no ano passado.
E, de fato, a situação mudou bastante, tanto pelas transformações do mercado de trabalho e criação de mecanismos de proteção social quanto pela valorização do salário mínimo. Esta última provoca dois efeitos principais no caso particular do abono salarial: tanto eleva o valor do benefício a ser pago quanto aumenta a quantidade de trabalhadores que estará apta a recebê-lo.
“Isto se deve ao fato de que a política de valorização real do salário mínimo aumenta o valor deste relativamente ao rendimento mediano da economia, aumentando assim a proporção de trabalhadores aptos ao benefício pela incorporação neste grupo de indivíduos – anteriormente – com rendimentos superiores a dois salários mínimos”, aponta um relatório do Tesouro Nacional publicado também em 2019.
Em outras palavras: como a partir da década passada o salário mínimo cresceu mais que a remuneração média de todos os trabalhadores, há muito mais gente ganhando até dois salários mínimos que antes.
O Tesouro Nacional observa que o abono, além de promover um incremento na renda desse trabalhador que recebia menos, também era uma forma de compensar uma parcela substancial da carga tributária e deveria estimular a formalização de trabalhadores. Mas ele vem gerando um tipo de concentração de renda nos últimos 20 anos.
O estudo mostrou que em 1997, cerca de 24% dos valores distribuídos pelo abono chegavam aos 30% dos domicílios brasileiros mais pobres. Em 2017, apenas 17% dos valores chegaram a esses lares, “evidenciando uma piora da focalização do abono nos últimos 20 anos”.
Esse problema de focalização também já havia sido explicitado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2019, quando analisou a proposta de mudança nos parâmetros de acesso ao abono salarial incluída na reforma da Previdência. A avaliação é de que os aspectos distributivos eram “claramente” mal focalizados.
“Tal qual existe hoje, 59% do abono vai para famílias na metade de cima da distribuição de renda. Mesmo se passar a ser pago apenas a quem ganha um salário mínimo ou menos, 40% dos pagamentos irão para a metade de cima da distribuição de renda. Para fins de comparação, apenas 7% dos benefícios do Programa Bolsa Família (PBF) vão para a metade superior da distribuição de renda”, apontava o documento.
Ainda de acordo com a análise do Ipea, quanto “menor” fosse a amplitude do abono, mais focalizado em famílias mais pobres ele seria. No caso de pagamentos de benefícios entre um a dois salários mínimos, apenas 15% do total seria voltado para os 30% mais pobres. No caso da limitação para apenas um salário mínimo, 23% do abono iria para os 30% mais pobres. “Apenas o abono de um salário mínimo é (levemente) pró-pobre [quando o coeficiente de concentração é menor que zero], mas não é uma política eficiente nesse sentido”, pontuava.
Mexer no abono salarial é tarefa política complexa
Ainda que tenha problemas de focalização e represente um custo relevante para as contas públicas, mexer no abono salarial é complexa tarefa política. Nem Dilma Rousseff nem Jair Bolsonaro conseguiram implementar mudanças sugeridas por suas equipes econômicas.
Na gestão da petista, o abono salarial havia sofrido modificações via medida provisória, mas nem todas foram mantidas para a aprovação da lei complementar. O governo precisou negociar um veto com o Congresso e acabou desistindo da principal mudança proposta. A ideia era limitar o pagamento do abono salarial para quem tivesse ao menos 180 dias de trabalho ininterrupto, mas foi dado um passo atrás e mantida a regra de pelo menos 30 dias de vínculo.
Mas foi aprovada a nova modelagem de cálculo do benefício. Antes, qualquer trabalhador com remuneração média de até dois mínimos estava apto a receber um salário mínimo de abono. Com a mudança, o pagamento passou a ser proporcional ao tempo de trabalho: o benefício passou a ser pago na proporção de 1/12 avos do salário mínimo para cada mês trabalhado com registro em carteira. Assim, se trabalhou meio ano no mercado formal, recebe meio salário mínimo de abono.
“Com isso, a medida visava, por um lado, à redução de gastos com o programa, decorrente da redução no benefício oferecido aos que trabalharem menos de doze meses, e, por outro, introduzir uma recompensa relativa para aqueles que permanecerem empregados formalmente por mais tempo, para desestimular a rotatividade no mercado de trabalho”, apontou o Ipea em relatório de avaliação do abono publicado neste ano.
O governo Bolsonaro propôs, junto da reforma da Previdência, a restrição da concessão do benefício, limitando-o a quem recebesse no máximo um salário mínimo, que era de R$ 998 na época. A proposta passou pela Câmara dos Deputados com mudanças: a régua do pagamento subiu e passou a abranger os trabalhadores com rendimento médio de até R$ 1.364,43 mensais.
Nem isso serviu no Senado, que rechaçou qualquer mudança e suprimiu esse trecho do texto aprovado. Com isso, foi mantido o pagamento do abono para quem ganha até dois salários mínimos mensais.
Naquele momento, o objetivo era gerar alguma folga fiscal para o governo. A Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, produziu nota técnica na época estimando esse alívio.
Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério da Economia, que traz estatísticas do trabalho formal no Brasil, apontava que quase metade da população ocupada recebia até dois salários mínimos mensais, o que representava cerca de 24 milhões de pessoas. A quantidade de trabalhadores com remuneração de até um salário mínimo era bem menor, inferior a 6% do total, ou 2,6 milhões de pessoas.
Restringindo o pagamento a esse número, o gasto médio do abono cairia do patamar de R$ 17 bilhões anuais para menos de R$ 2 bilhões por ano. Os R$ 15 bilhões anuais que “sobrariam” com essa mudança que não foi concretizada agora fazem falta para a elaboração do Renda Brasil.
Conteúdo editado por: Fernando Jasper