Em meio ao processo de recuperação judicial (RJ), a Editora Abril, responsável pela publicação de títulos como Veja e Exame, propôs a credores um pagamento das dívidas com descontos que, em alguns casos, correspondem a 92% do valor devido.
O plano criado pela empresa, com consultoria da Alvarez e Marçal, só será posto em prática se aprovado em assembleia de credores e homologado na Justiça. Em teoria, qualquer categoria de credores, desde os bancos até os funcionários, tem possibilidade de barrar o plano. Essa assembleia tinha prazo de até 150 dias do pedido de RJ para acontecer, mas já foi adiada uma vez e pode ter a data modificada sem limites. Qualquer pagamento a partir de agora só ocorrerá a posteriori.
Dentro do escopo previsto no plano, a maior parte dos pagamentos sofrerá descontos relevantes, a depender do tipo de dívida que a empresa tem com cada credor. Dívidas que chegam a R$ 65 mil se transformaram em parcelas irrisórias de R$ 20, conforme um dos credores revelou ao InfoMoney. Também há proposta de correção monetária indexada à Taxa Referencial (TR), que atualmente está zerada e tem valor anual abaixo da inflação desde 2000: ou seja, uma correção praticamente inexistente.
Tipos de credores
O InfoMoney teve acesso à proposta de pagamento enviada pela companhia. Nela, o grupo separa as dívidas em 4 categorias: créditos trabalhistas (classe I); créditos com garantia real (classe II); créditos de quirografários (classe III); créditos de microempresas e empresas de pequeno porte (classe IV).
A primeira categoria engloba ex-funcionários contratados dentro do regime CLT, aos quais o grupo garantirá o pagamento de até 250 salários mínimos por pessoa, o que atualmente corresponde a R$ 238.500, sem deságio. Essas pessoas receberão este valor ao longo de 12 meses a partir da aprovação do plano de RJ. Dívidas que superarem este montante entram em outra regra.
Na segunda lista encontram-se os créditos assegurados por direitos reais de garantia, como penhor e hipoteca. Nesta entram, por exemplo, os grandes bancos, como Bradesco, Itaú e Santander.
As classes III e IV correspondem, respectivamente, a créditos sem garantia de pessoas físicas e créditos sem garantia contratados através de um CNPJ. Dentro desta última categoria encontram-se pequenas empresas, como gráficas e transportadoras, mas também há profissionais pessoa física. Isso porque a editora costumeiramente trabalhava com repórteres, fotógrafos, designers e videomakers freelancers, contratando-os através de um CNPJ. Essa prática não é ilegal se o trabalho for eventual e não houver vínculo empregatício.
Exemplo
O repórter especial Lourival Sant’Anna está dentro desta regra. Ele é freelancer para diversos veículos e produzia conteúdo para publicações do grupo. No momento da recuperação, teve uma dívida de R$ 65,3 mil reconhecida pela empresa. Deste valor, o primeiro pagamento seria uma moratória de no máximo R$ 20 mil nos primeiros 3 anos, com deságio de 20%, totalizando R$ 16 mil.
Em cima da parcela da dívida que supera os R$ 20 mil, neste caso de R$ 45,3 mil, incide um novo deságio de 20%. Após esse desconto, a empresa pagaria 10% do total restante em mais 15 anos, contabilizados a partir do término do período da moratória. No final de 18 anos, portanto, o profissional recebe mais R$ 3.629 (8% do valor bruto) em parcelas de R$ 20 mensais – com juros e correção monetária pela TR.
Como uma espécie de “bônus”, os outros 90% da dívida restante não precisariam ser pagos pela empresa caso estas 180 parcelas sejam quitadas em dia, de acordo com o plano.
Além do calote que é a transformação de uma dívida de R$ 65 mil em um pagamento total de aproximadamente R$ 20 mil, o jornalista calcula outros prejuízos. “Para trabalhar como freelancer, tive de abrir um CNPJ e já paguei os impostos [referentes aos contratos com a Abril]”. Os impostos corresponderam 8,4% do valor contratual, o que totalizou, de acordo com seus cálculos, R$ 5.885.
Fora tudo isso, Lourival teve gastos específicos para sua atividade como setorista da área de turismo, arcando com os custos de passagens, hospedagens e outros gastos incalculáveis.
Credores mais protegidos
Outros casos emblemáticos podem ser encontrados na lista pública de credores. Mesmo dentro da categoria I, a mais protegida dentro da proposta, há prejuízos relevantes – já que só é assegurado sem grandes descontos um valor limitado.
Nesta categoria, o maior montante listado entre os credores é o de R$ 2,4 milhões, referente à dívida de uma ex-diretora. Neste caso, conforme as regras propostas pela editora, garante-se nos primeiros 12 meses após a aprovação da proposta o pagamento de 250 salários mínimos - ou seja, R$ 238.500. Este é o valor líquido máximo a ser pago para todos os funcionários CLT em um primeiro momento, e só será pago após a assembleia.
Depois disso, a regra aplicada para a categoria I é a mesma da categoria IV. A profissional citada acabaria recebendo, portanto, mais R$ 156,9 mil em 180 parcelas de R$ 871, sem juros ou correção monetária. Outros ex-funcionários com dívidas menores também receberiam desta forma – primeira parcela com deságio e 8% do restante em até 18 anos.
Em todos os casos, os demitidos de todas as profissões estão sem receber boa parte do que lhes cabe até o momento. O prazo para o pagamento será de 12 meses após a aprovação do plano, o que significa que muitos jornalistas, profissionais administrativos, distribuidores e trabalhadores de gráfica estão sem receber desde a solicitação da RJ há 4 meses. Nas categorias mais sensíveis, há famílias com perigo de ficarem desabrigadas e passarem fome.
Na semana passada, a Justiça de São Paulo determinou que a Abril faça a readmissão de “todos os trabalhadores e trabalhadoras demitidos em massa desde julho do ano passado”, mas ainda cabe recurso.
Funcionários
Para Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas e funcionário da empresa, é descabido que a Abril considere trabalhadores CLT e freelas com CNPJ como categorias distintas. “A gente [sindicalistas] acha que a empresa tem de pagar tudo que deve sem nenhum deságio tanto para CLT como freelas”, disse. “Essa é uma verba que a Justiça do Trabalho considera ‘verba alimentar’, usada para pagar as contas e botar comida na mesa”, explica.
Uma série de vídeos denominada “Vítimas da Abril” vem mostrando alguns casos particulares de pessoas com problemas decorrentes da falta de pagamentos. Um gráfico conta estar praticamente sem recursos para arcar com um tratamento necessário para seu filho, que tem necessidades especiais. Outro demitido tem tumor na hipófise e se viu desamparado sem o plano de saúde que a empresa oferecia.
Embora garanta que “ninguém prefere a falência da Abril”, Zocchi entende que os Civita, família controladora da empresa, poderiam ter realizado uma RJ mais “humanizada” se garantisse o pagamento aos trabalhadores desde o início. “Há empresas que entraram em recuperação judicial e não colocaram as verbas rescisórias no plano. Eles optaram por dar calote nos funcionários que fizeram a fortuna da família”, lamenta.
Relembre o caso
Em 2016, os três herdeiros de Roberto Civita apareceram na lista da Forbes de maiores fortunas brasileiras, com patrimônio combinado estimado de US$ 3,3 bilhões.
Com dívidas totais de aproximadamente R$ 1,6 bilhão, o Grupo Abril entrou com pedido de RJ em agosto deste ano. Antes disso, já contava com os serviços da Alvarez e Marçal e havia empossado um dos sócios da consultoria, Marcos Haaland, como presidente.
Como razões do problema, a companhia fala em perda de parte relevante da receita publicitária e a falta de predisposição do consumidor brasileiro de “pagar adequadamente pelo consumo de notícias de qualidade divulgadas por meios digitais”
Estima-se que, no total, cerca de 900 funcionários foram demitidos durante o momento de dificuldade da companhia. Diversos títulos, como a revista Info, já foram descontinuados. Casa Cor, VIP, Boa Forma, Viagem e Turismo, Placar, Minha Casa, Mundo Estranho e Arquitetura e Construção estão listados na RJ como frentes das quais quer se desfazer, assim como a gráfica e as empresas Dilogpar, Tex Courier e Casa Cor.
Do total da dívida, os bancos Itaú, Bradesco e Santander são os maiores credores, detendo debêntures de cerca de R$ 1 bilhão. A dívida trabalhista (categoria I), está em aproximadamente R$ 90 milhões.
Nesta segunda-feira (10), o Valor publicou que a empresa está em negociações com Fábio Carvalho, da Legion Holdings, para uma possível venda. A priori, o advogado dele negou a informação.
Contatada, a Abril não quis comentar os termos da proposta de RJ.
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