O alinhamento pessoal entre os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump trouxe à tona a discussão sobre um futuro acordo de livre comércio entre Brasil e Estados Unidos. O interesse pelo acordo já foi manifestado publicamente pelos líderes dos dois países e um primeiro passo já foi dado em direção a esse pacto, com o abandono da política de cooperação Sul-Sul (do tempo dos governos petistas) e com os recentes protocolos de comércio e cooperação econômica assinados entre os dois países.
Mas, caso o candidato Joe Biden vença as eleições americanas, como ficam as tratativas desse pacto comercial com os Estados Unidos? Para alguns especialistas consultados pela Gazeta do Povo, a vitória do democrata afetaria sim as negociações do acordo, que já estava longe de sair mesmo com Trump. Já para outros analistas também ouvidos pela reportagem, a relação comercial entre Brasil e EUA é sólida e deve avançar, mesmo que a passos mais lentos.
Essa é a visão, por exemplo, do embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster. Em entrevista recente à Gazeta do Povo, ele disse que os governos Bolsonaro e Trump criaram uma “agenda de grande dinamismo, que abarca uma quantidade de iniciativas”. Para boa parte delas, de acordo com o embaixador, não haverá perda de interesse em uma eventual administração Biden. “Agora, o ritmo provavelmente não será o mesmo”, ressalvou.
Economista e analista político, Carlo Barbieri tem a mesma linha de raciocínio do embaixador. Ele diz que uma boa relação pessoal entre os presidentes ajuda, mas não é essencial, pois em questões comerciais tendem a preponderar os interesses de Estado.
“Quem quer que seja o presidente, os Estados Unidos continuam abertos a acordos bilaterais, como já fez com Coreia, Japão, Israel, entre outros. Não será difícil para o Brasil, independentemente de antipatias ou simpatias, seguir nessas tratativas. Claro, se Biden ganhar, a velocidade vai ser menor, o interesse político vai ser menor, mas esse não será o problema”, diz Barbieri.
Questão ambiental vai ser pedra no sapato de Bolsonaro
Francisco Américo Cassano, professor de Comércio Exterior e pesquisador em Relações e Negócios Internacionais na Universidade Presbiteriana, crê que o Brasil terá de começar novas negociações caso Biden vença as eleições. “Os acordos que já foram assinados entre Brasil e Estados Unidos não serão revogados. Mas no que se refere a acordo bilateral, voltará à estaca zero. O que estava combinado com Trump, já não vai valer mais e novas negociações terão de ser abertas", explica.
"Não acredito que o Biden vai retaliar o Brasil comercialmente, mas tenho a certeza que ele vai exigir maior rigor no controle ambiental. Deve ser iniciado novo período de tratativas, mas para que isso seja possível o governo brasileiro terá de rever toda sua política externa”, completa o professor.
Carlo Barbieri, contudo, acredita que a questão ambiental ficará mais no palco político e não afetará tanto as questões comerciais. “Com certeza o Biden vai usar o Brasil como bode expiatório, fazendo pronunciamentos públicos na parte ambiental, ecológica, sobre a Amazônia. Será o motivo de manifestações públicas do Biden, mais no aspecto de falar para seu público. Eu não quero crer que ele colocará em risco a relação comercial entre os dois por causa disso. O Brasil é o maior fluxo de comércio com os Estados Unidos na América Latina.”
Amplo acordo de livre comércio: realidade ou não?
Para Thiago de Aragão, mestre em relações internacionais e diretor de estratégia da Arko Advice, não é viável no momento um amplo acordo de livre comércio com os Estados Unidos, como prega o governo brasileiro.
"Bastam conversas superficiais em Washington com representantes do USTR [representante comercial dos EUA para questões comerciais], para ver que a ideia de um amplo acordo não é vista como viável. Em democracias com alto nível de institucionalidade como EUA e Brasil, as relações seguem o ritmo das burocracias e não dos presidentes", escreve em artigo intitulado "A China no meio do caminho".
Em junho deste ano, o representante comercial americano, Robert Lighthizer, afirmou que os Estados Unidos não pretendem negociar um acordo de livre comércio com o Brasil neste momento. "O que estamos fazendo agora com o Brasil é tentando resolver problemas específicos para o país se abrir e para criar empregos para a América. No momento, não temos planos para um FTA [sigla de acordo de livre comércio, em inglês]" afirmou Lighthizer na ocasião.
Técnicos do governo brasileiro e americanos realmente evitam falar publicamente de tratativas para acordo de livre comércio entre BR-EUA. Porém, nos bastidores, o governo brasileiro vinha se movimentando para isso, mesmo que na prática ainda se tenha um longo caminho a percorrer.
Em março deste ano, após se reunir com Trump, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que havia sido dado "o primeiro passo para um acordo de livre comércio". “Como conversei com o senhor Donald Trump, há um interesse de começarmos a discutir uma política de livre comércio entre Brasil e Estados Unidos. Isso, no meu entender, é fantástico para todos nós. Nós estamos demonstrando que queremos, sim, o livre comércio, que a livre iniciativa se faça presente nesses momentos”, disse Bolsonaro na época.
Em outubro, os governos brasileiro e americano assinaram uma série de protocolos não tarifários de boas práticas para facilitar o comércio entre os países, desburocratizar a regulação e reduzir a corrupção. O acordo foi divulgado pelos governos como um primeiro passo para um futuro acordo de livre comércio.
"Temos hoje um anúncio padrão ouro, muito moderno no comércio. É um sinal muito positivo para um acordo mais amplo entre EUA e Brasil e que, em última instância, pode levar a acordo de livre comércio entre os dois países. Queremos fazer isso passo a passo para ter certeza de que o acordo é ótimo para o Brasil e ótimo para os Estados Unidos", disse o conselheiro de Segurança dos Estados Unidos, Robert O'Brien, após a assinatura.
Protecionismo da indústria brasileira é desafio a ser superado
No time de especialistas que acha viável um acordo de livre comércio entre Brasil e Estados Unidos no médio e longo prazo, Carlo Barbieri aponta um empecilho: a indústria brasileira. Ele lembra que os governos passados fecharam o país para exportação e incentivaram a produção nacional. Com isso, a indústria ficou com um mercado interno cativo, mas reduziu sua competitividade, enquanto parques industriais do mundo inteiro se modernizaram.
“A grande dificuldade de acordo com Estados Unidos está muito mais na resistência da indústria brasileira que na intenção do governo americano. Quando há um acordo, não pode mais ter a proteção tarifária que hoje existe para a indústria estabelecida no Brasil. O governo vai ter que oferecer compensações para a indústria brasileira ou dilatar no médio e longo prazo os efeitos da abertura comercial”, diz Barbieri, que também é presidente do Grupo Oxford, a maior empresa de consultoria brasileira nos EUA.
Mercosul: outro empecilho
Além da indústria, outro empecilho a um acordo comercial entre Brasil e Estados Unidos é o próprio Mercosul. O professor Francisco Américo Cassano lembra que as regras atuais do bloco impedem que o governo brasileiro faça acordos bilaterais.
“Hoje teria que ser um acordo Estados Unidos-Mercosul. Para fazer o acordo bilateral Brasil-EUA, o Mercosul precisa revisar suas políticas internas ou o Brasil teria de sair do bloco.” A saída do Mercosul, na visão do professor, não seria um problema para o Brasil, pois a tendência mundial, explica, são acordos bilaterais ao invés de multilaterais (em blocos).
Há ou não interesse dos EUA no Brasil?
Quando se fala em um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, está claro o interesse por parte do lado brasileiro. Mas e os americanos? Para Cassano e Thiago de Aragão, os Estados Unidos têm outras prioridades.
"Para o Brasil, eles são prioridade um. Para os Estados Unidos, o Brasil não é prioridade um. Tanto é que o Trump não fez passos maravilhosos em relação ao Brasil”, afirma Cassano. “O Brasil é importante para os EUA, mas não é em primeiro nível. Existem inúmeros temas mais estratégicos para o presidente americano antes do Brasil: China, Rússia, México, Otan, Oriente Médio, terrorismo”, pontua Aragão, em artigo.
Já para Barbieri, os Estados Unidos têm sim interesse em fechar novos acordos de livre comércio, pois eles estão buscando diversificar seus provedores de produtos e insumos de modo a não ficar refém da China. O especialista afirma que o Brasil tem a vantagem de já ser um importante parceiro comercial americano e de estar localizado na América, sem precisar que os navios circulem no canal do Panamá.
Como seria um acordo de livre comércio
Ao se falar em amplo acordo de livre comércio, espera-se que ocorram mudanças em tarifas e quotas de importação e exportação, de modo a aumentar a circulação de bens entre os dois países, além da eliminação de barreiras alfandegárias. Mas o governo brasileiro também fala em acordo de livre comércio sem mudanças em tarifas, como o que foi fechado com o Chile, para facilitar o comércio, as telecomunicações, o comércio eletrônico e a propriedade intelectual dos dois países.
No caso do Brasil e dos Estados Unidos, como não há tratativas oficiais, é difícil projetar como seria esse acordo de livre comércio. Mas a Câmara Americana de Comércio (Amcham) – que representa mais de 5 mil empresas brasileiras e americanas – tenta vislumbrar esse cenário.
A associação defende que um amplo acordo de livre comércio envolvendo questões tarifárias pode ser sim alcançado entre BR-EUA, mas gradualmente, começando por questões não tarifárias. "Este objetivo poderá ser alcançado de maneira gradual, iniciando-se por negociações em temas não tarifários, como facilitação de comércio, serviços, compras públicas, investimentos, comércio eletrônico e barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias. Tal abordagem permitiria resultados mais céleres, ao mesmo tempo em que prepararia o terreno para avançar em direção ao livre comércio. Por deixar a negociação de tarifas para um segundo momento, esta alternativa poderia ser realizada em nível bilateral e ensejaria menor grau de complexidade."
Os protocolos assinados em outubro pelos governos brasileiro e americano vão ao encontro da proposta da Acham, diz a associação. “É um pacote formado por temas não tarifários, bastante técnicos, mas que trazem benefícios práticos muito significativos para o dia a dia das empresas e para as trocas comercias entre Brasil e Estados Unidos”, diz Deborah Vieitas, CEO da Amcham, em nota. “Esperamos que o entendimento seja implementado com agilidade, de forma a contribuir para a retomada do comércio bilateral, e também sirva para lançar as bases para um futuro acordo de livre comércio envolvendo os dois países”, completa.
Para um acordo de livre comércio entre Brasil e Estados Unidos, a Amcham defende os seguintes pontos:
- Evitar a dupla tributação de lucros, dividendos e royalties entre Brasil e Estados Unidos;
- Apoiar, facilitar e conferir proteção adicional aos fluxos mútuos de investimentos;
- Facilitar o movimento de empresários entre os dois países, com destaque para a participação do Brasil no programa Global Entry (em andamento desde março);
- Reduzir burocracias, custos e prazos no comércio bilateral;
- Diversificar iniciativas setoriais de cooperação regulatória entre os dois países, sobretudo em relação a produtos com maior valor agregado, reduzindo os custos de exportação;
- Regras bilaterais e de maior cooperação sobre boas práticas regulatórias (em andamento desde outubro);
- Análise acelerada de patentes em um acordo permanente;
- Continuidade do apoio do governo dos Estados Unidos o processo de acessão do Brasil à OCDE (em andamento); e
- Agenda bilateral em áreas de interesse mútuo como comércio, investimentos, defesa,segurança, energia, e agronegócio.
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