Cerca de 550 shoppings – 95% do total do país – interromperam atividades em março de 2020, nos primeiros dias da pandemia de coronavírus. Donos de um quiosque de semijoias no Boulevard Shopping, de Belo Horizonte, Nadia Fontaine, 34 anos, e Bernardo Andrade, 42, não tiveram alternativa a não ser levar as peças para casa e despachar os poucos pedidos on-line que recebiam na época.
A aposta do casal de empreendedores no comércio eletrônico deu certo, mesmo para um produto delicado e considerado supérfluo. Tão certo que ajudou a impulsionar as atividades presenciais da empresa quando as restrições sanitárias começaram a ser aliviadas. Capitalizada pelas vendas on-line, a Adüla inaugurou um segundo ponto de vendas físicas no fim de 2020 e agora prepara a abertura de uma unidade em outro shopping da capital mineira.
Na época da paralisação, o quiosque no shopping gerava um faturamento mensal próximo de R$ 60 mil. Enquanto isso, as vendas on-line variavam de R$ 1 mil a R$ 2 mil por mês – no melhor momento até então, o site da Adüla havia faturado R$ 6 mil entre a Black Friday e o Natal de 2018, após uma consultoria do Sebrae. Mesmo esse valor, no entanto, seria insuficiente para manter a empresa durante o longo período de isolamento social.
A saída foi usar mídia paga nas redes sociais. Funcionou: o faturamento on-line chegou a R$ 30 mil mensais. O nome da empresa faz referência ao conceito de adular e dar carinho com peças minimalistas – e esses conceitos foram explorados durante a pandemia nas redes, alavancando as vendas.
A história de Nadia e Bernardo é mais uma da série de reportagens O Brasil que inspira, que apresenta trajetórias de pessoas que encontraram novas formas de trabalhar e empreender na pandemia de coronavírus.
Quem dependeu só dos shoppings sofreu em 2020. Segundo a Abrasce, representante dos centros comerciais, as vendas despencaram 33% no ano, para R$ 128,8 bilhões, o menor valor em 11 anos.
Para minimizar o efeito do prejuízo para os lojistas, muitos centros comerciais concederam descontos. Segundo informação divulgada pela Abrasce no Censo Brasileiro de Shopping Centers, as administradoras suspenderam ou adiaram a cobrança de cerca de R$ 5 bilhões em aluguéis, taxas de condomínio e fundos de promoção.
Para a Adüla, nem havia preocupação com aluguel. Por ser um quiosque, não havia cobrança do ponto. A empresa, aliás, é toda orientada pelo conceito de baixo custo. O que ajudou a alavancar os resultados na internet, onde o cenário foi muito diferente do vivido pelos shoppings.
Com muitos brasileiros em casa e restringindo viagens e gastos de lazer por causa da pandemia, o e-commerce faturou como nunca: cresceu 41% no Brasil em 2020, segundo a 43.ª edição do relatório Webshoppers, divulgado pela Ebit em parceria com a Nielsen.
A trajetória empreendedora de uma especialista em logística e um engenheiro de alimentos
A história da Adüla, que retrata bem como é uma jornada empreendedora, teve início na Austrália, onde o brasileiro Bernardo conheceu a francesa Nadia. Iniciaram uma vida juntos, com o pedido de cidadania australiana. Depois de alguns anos, com as economias que fizeram, partiram em uma viagem para a América Latina que inicialmente duraria sete meses.
Ele trabalhava como engenheiro de alimentos e ela coordenava a área de logística de uma empresa de papel. A ideia era prospectar algum produto que pudessem importar e assim dar início a algum negócio próprio na Austrália.
Na viagem, no entanto, o casal acabou estendendo a permanência no Brasil, para Bernardo ficar mais tempo com os pais idosos, que não encontrava havia uma década.
Em abril de 2017, Nadia e Bernardo se casaram em Arraial d’Ajuda (BA). "Era uma conjuntura um pouco particular, porque a Austrália tinha, naquela época, uma situação confortável de pleno emprego. Quando você é cidadão, pode se dar ao luxo de sair e, quando voltar, achar vaga na sua área”, conta ela.
De todo modo, a procura por uma oportunidade continuava. “Eu vi algumas barrinhas de cereal no Brasil, e pedi para um amigo me mandar da Austrália algumas para eu comparar. Percebi que lá já estava bem mais avançado, era aqui que precisava de mais opções”, relembra Bernardo.
Ele decidiu então produzir barrinhas artesanais e conseguiu até vender para a Mundo Verde, franquia de produtos saudáveis que tinha 377 unidades no Brasil fim de 2020. O produto tinha aceitação, mas Bernardo não pretendia investir em uma fábrica de alimentos, porque a ideia ainda era de voltar para a Austrália.
Nadia também buscava algo para se ocupar, ao mesmo tempo em que se assustava com o alto preço dos produtos no Brasil. “O Bernardo tem muitos sobrinhos na família. Na hora de presentear, era uma luta achar algo de qualidade por menos de R$ 150, e eu fiquei preocupada: a gente sem emprego, gastando desse jeito, pensando em como seria com todos os aniversários, Natal. Na França, compramos um anelzinho por poucos euros, em uma embalagem bonita, e ficamos felizes”, diz.
Ela conhecia a fundo o assunto: além de ser de família indiana, com o costume de presentear com joias, ela também tinha como hobby a ourivesaria, que aprendeu em cursos na Austrália. Era uma forma de extravasar seu lado artístico.
Até então, o manuseio de metais preciosos era apenas uma diversão. O casal tinha feito uma visita turística a uma fábrica de semijoias em Limeira (SP), onde morava uma irmã de Bernardo. O casal manteve o contato com aquela empresa, e dessa parceria surgiram os primeiros produtos da Adüla, desenhados à mão por Nadia.
Vendas para a família, feiras, quiosque: empresa foi testando aceitação e crescendo aos poucos
O investimento inicial foi de apenas R$ 3 mil. As peças foram adquiridas por familiares, mas o apoio motivou os empreendedores a se lançarem no ramo: começaram a expor em feiras de artesanato em Belo Horizonte.
Nadia fez a logomarca e uma estudante de design digitalizou nos pacotinhos de algodão, tudo a custos módicos. O casal acordava cedo nos fins de semana para montar o estande de vendas. "As feiras funcionaram como uma pesquisa de mercado, para a gente ver como era a aceitação do produto e do preço. As pessoas estavam tirando dinheiro do bolso para comprar da gente, e isso é muito importante. Porque a família às vezes compra para ajudar. Mas para alguém na feira olhar os outros produtos, voltar e comprar da gente, é porque o produto é realmente bom", avalia Bernardo.
A experiência seguinte foi em Arraial d’Ajuda, onde o casal passava férias com os familiares. Havia pedidos on-line para enviar, e por isso as peças da Adüla foram na mala para o litoral baiano. Por lá, uma barraquinha abandonada de tapioca ganhou um acréscimo de palha e um pequeno toldo por R$ 50 e peças de design que a deixaram pronta para combinar com as semijoias. O casal pagou aluguel de R$ 50 por dia e em dez dias vendeu todo o estoque. Turistas de várias partes do Brasil e da Argentina levaram o nome da marca para longe. Nadia e Bernardo ficaram satisfeitos, mas sabiam que era hora de tomar uma decisão importante.
A oportunidade surgiu em uma feira de arquitetura, móveis e design chamada More Mais por Menos. Em troca de R$ 5 mil de aluguel por um mês, a Adüla podia vender seus produtos em um estande construído especialmente para a marca. “Ficamos assustados com o valor, mas decidimos apostar. A gente queria ver se dava um gás no negócio ou se era hora de voltar para a Austrália", relata Nadia. Conseguiram vender R$ 30 mil em mercadoria e confirmaram o potencial do negócio.
Para seguir em frente, a intenção era criar um modelo de quiosque itinerante, como existe na França, mas o casal diz que uma operação dessas não era tão simples de executar. O arquiteto da feira anterior desenhou um outro modelo de quiosque, de 6 metros quadrados, bem simples, sem ligação de energia elétrica, e foi com ele que a Adüla iniciou suas operações no Minas Shopping, no fim de 2018. Em maio de 2019, o quiosque foi para o Boulevard Shopping, frequentado por clientes de maior poder aquisitivo. O ponto foi ampliado para 9 metros quadrados e ganhou ligação de energia elétrica.
Comércio on-line na pandemia: do improviso ao salto nas vendas
No quiosque, a Adüla empregava três vendedoras, que entraram no programa do governo de corte de salário e jornada. Nos primeiros meses de pandemia, apenas os proprietários trabalharam, com apoio de uma estagiária, responsável pelo site.
“Para a gente, que vendia em torno de R$ 2 mil, foi uma loucura. As vendedoras entraram no plano do governo e eu e o Bernardo não tínhamos nem estrutura nem organização. A gente estava tão desesperada para vender que respondia qualquer mensagem, a hora que fosse, sem ser profissional”, conta Nadia. Como se ocupava da parte operacional, o casal não conseguia organizar os processos e mesmo as notas eram emitidas manualmente.
Com o passar do tempo e o melhor entendimento sobre protocolos de saúde, uma das vendedoras passou a trabalhar na residência do casal. Aos poucos, as vendas presenciais no shopping foram retomadas, além da inauguração de um novo ponto, em uma galeria de Belo Horizonte, que também passou a abrigar a administração da Adüla.
Com os dois pontos fixos e as vendas on-line, o faturamento subiu para cerca de R$ 110 mil. “Subiu, mas após a gente se arriscar em várias coisas. As vendas no shopping ainda não voltaram ao normal, mas a gente acha que, se não investir agora, depois vai ser tarde demais”, diz Nadia.
O know-how que o casal trouxe de suas áreas originais de atuação foi fundamental para o sucesso da marca. Bernardo garante o controle de qualidade do processo artesanal, que leva cerca de 40 dias e envolve muitas etapas e vários fornecedores, e Nadia organiza a logística entre essas etapas.
A fabricação de um anel pode envolver, por exemplo, pedras de Minas Gerais que são enviadas a um fabricante de São Paulo para montar a peça; ou então a tecnologia de uma empresa do Sul para o corte a laser das semijoias de prata.
“Crescemos por conta disso. Não somos uma marca que compra e revende. Tem busca de matéria-prima, pedras naturais, cuidado com os detalhes e a qualidade”, afirma a empreendedora.
Caso o negócio deixe de prosperar, o casal ainda pode retornar à Austrália. Mas, enquanto isso, o que predomina no relato de Nadia e Bernardo é o espírito empreendedor, a tentativa de produzir peças únicas, com qualidade e com o menor custo possível, além de sempre buscar informação e consultoria para alavancar as vendas e a produtividade.
Esta é a oitava reportagem da série O Brasil que inspira, que conta histórias de coragem, criatividade e perseverança nos negócios em meio à pandemia de coronavírus.
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