Frustrando a expectativa do mercado financeiro e não atendendo a uma das mais incisivas promessas de campanha, o governo Bolsonaro terminou o ano passado sem conseguir vender nenhuma estatal de controle direto da União. O processo de desestatização mais adiantado - embora ainda não concluído - é o da privatização da Eletrobras, aprovado pelo Congresso neste ano. A expectativa inicial do governo era concluir a operação em janeiro de 2022, mas, com os impasses no processo, a projeção se estendeu para, até, no máximo, maio.
Ainda assim, há quem acredite que a venda da companhia acabe comprometida, em função da proximidade das eleições presidenciais em 2022 e de impasses no trâmite do processo. Responsável por detectar possíveis irregularidades no trâmite, reduzir chances de judicialização do processo de venda e dar segurança jurídica aos interessados, o Tribunal de Contas da União (TCU) adiou por duas vezes o aval final à privatização da estatal.
Segundo os jornais "O Globo" e "Valor", o tribunal identificou falta de informações suficientes acerca da precificação da empresa e dos parâmetros usados no cálculo do valor dos contratos, além de ausência de estudos sobre as garantias físicas das usinas hidrelétricas pertencentes à Eletrobras.
Após o aval do TCU, restam ainda três passos para a conclusão do processo: análise da homologação por parte da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da própria assembleia de acionistas da Eletrobras e a venda de ações e capitalização de fato.
Há, além disso, expectativa por parte do governo com relação à privatização dos Correios em 2022, anunciada recentemente por Guedes como “prioridade” no próximo ano. No entanto, o projeto que abre caminho para a privatização da companhia está pendente de análise da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) no Senado.
Relator da proposta na comissão, o senador Otto Alencar (PSD-BA) decidiu adiar a apreciação do PL em função da resistência da oposição e dúvidas técnicas manifestadas por partidos da Casa.
Não só analistas de fora, mas membros da própria equipe econômica são pouco otimistas quanto à possibilidade de aprovação, afirmando que a janela para a análise da proposta teria se encerrado em 2021.
A secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), Martha Seillier, afirma que a privatização dos Correios só deve acontecer na gestão do presidente Jair Bolsonaro se o Congresso aprovar o projeto de lei sobre o tema até, no máximo, abril. Sem a mudança na lei, o governo avançaria apenas com a etapa de consulta pública.
"Sem a aprovação do projeto, o processo não anda no Tribunal de Contas [da União, o TCU] que vai justamente checar a legalidade do que estamos fazendo, se houve a aprovação pelo Congresso. É onde o Senado começa a ser um entrave ao processo", disse Martha ao "Valor".
Balanço das estatais
Ao todo, são 189 estatais federais, das quais 46 estão sob controle direto da União. Segundo afirma o Tesouro no mais recente Boletim das Participações Societárias da União, relativo a 2020 e divulgado em dezembro. Apesar de o número de empresas controladas diretamente ter se mantido semelhante entre 2019 a 2020, "é notória a continuidade do processo de desestatização, com direcionamento de mais empresas para estudos visando à sua privatização ou dissolução". O valor das participações da União nas 46 empresas sob controle direto cresceu 9,91% entre 2019 e 2020, passando de R$ 362 bilhões para R$ 398 bilhões.
A arrecadação com a agenda de privatizações e concessões está muito distante da meta prevista por Bolsonaro no início do mandato, de pelo menos R$ 2 trilhões. Até agora, foram captados R$ 185 bilhões com privatizações e concessões, segundo o relatório da 19ª Reunião do Conselho do Programa de Parcerias em Investimentos (PPI).
Apesar de não ter conseguido privatizar nenhuma estatal sob seu controle direto, a União se concentra nas desestatizações de subsidiárias, especialmente da Petrobrás e da Eletrobras. "Houve uma redução importante do número das empresas controladas indiretamente com a continuidade do processo de venda de ativos de importantes empresas controladas", afirma o Tesouro.
Relatório recente do PPI indica que em 2021 foram privatizadas quatro companhias, processo que gerou uma receita de cerca de R$ 27 bilhões aos cofres públicos.
“Há um sentimento de decepção [com relação à agenda de privatizações], mas não dá pra dizer que o governo não fez nada. Seria exagerado”, avalia Ulisses Ruiz de Gamboa, professor de Economia do Insper. “Não dá pra dizer que é terra arrasada. Ficou aquém do esperado, sim, mas algumas conquistas ocorreram”.
Segundo o PPI, há pelo menos 13 projetos de desestatização previstos para ocorrer em 2022, relacionados às seguintes estatais:
- Eletrobras
- Codesa
- ABGF
- Trensurb
- Correios
- Serpro
- Dataprev
- Emgea
- Cesasaminas
- Nuclep
- Porto Organizado de Santos (SP)
- CBTU/MG + linha 2 metrô BH
Se a área de privatizações se dá num ritmo mais lento, a de concessões avançou significativamente. Ainda de acordo com o relatório do PPI, divulgado em 16 de dezembro, foram realizados 60 leilões em 2021. A expectativa de investimento com os projetos é de R$ 334 bi, além de R$ 51 bilhões em outorgas. Ao todo, considerando desde o início do mandato de Bolsonaro, foram realizados 131 projetos e leilões, com expectativa de investimento de R$ 822,3 bilhões e R$ 148,3 bilhões em recolhimento de outorgas.
Quanto às arrecadações, o relatório do Tesouro afirma que, "em relação a 2019, a União recebeu bem menos dividendos em 2020, reflexo de antecipações realizadas no ano anterior e de uma menor distribuição de resultados com a pandemia da Covid-19. Foram R$ 6,6 bilhões em 2020, contra R$ 20,8 bilhões de 2019. Algumas empresas não efetuaram distribuição com base em lucro do exercício e mantiveram o percentual de destinação no mínimo".
As transferências de recursos para manutenção e investimento de estatais continuou em "trajetória de crescimento", afirma o Tesouro (R$ 18,97 bilhões em 2020, contra R$ 17,97 bilhões em 2019). "A média do grau de dependência das empresas estatais dependentes continuou acima de 90% em 2020", diz.
Ainda segundo o levantamento, em 2020, um número menor de empresas estatais apresentou lucro. Foram 24 empresas enquanto, em 2019, esse número foi de 29. Em contrapartida, 23 empresas estatais diretamente controladas registraram prejuízo líquido, com destaque para a EBSERH (R$ 7,3 bilhões); Embrapa (R$ 3,5 bilhões) e Infraero (R$ 2,3 bilhões).
Criação de estatais
Na contramão da promessa de reduzir a participação do Estado na economia, por outro lado, em sua gestão Bolsonaro já criou duas estatais. A primeira delas foi criada em 2020: a NAV Brasil, sob comando do Ministério da Defesa, ficou responsável pelo controle de navegação aérea da Infraero.
Em dezembro de 2021, além disso, Bolsonaro criou a ENBpar, que será responsável por gerir a Itaipu Binacional e a Eletronuclear, subsidiárias da Eletrobras e que não podem ser privatizadas junto com a companhia.
Falta de apoio no Congresso à agenda liberal
Na perspectiva de Gamboa, o programa ambicioso de privatizações prometido por Bolsonaro arrefeceu quando o governo estabeleceu uma aliança com o “Centrão” em busca de apoio político. Com o movimento, o fator político se interpôs ao "ímpeto privatizador" do governo, diz o especialista.
“Essas alianças dificultam o avanço de um processo de privatização em que o governo venderia empresas e geraria receitas, mas, em contrapartida, é algo que significa menos cargos, menos verbas”, diz ele. “O programa de privatizações anunciado por Guedes era bastante ambicioso, e tínhamos esperança de que isso fosse realmente acontecer dentro do ajuste fiscal. Mas, a posteriori, os resultados foram bastante inferiores ao que a gente esperava”.
Guedes admite a falta de capital político para fazer avançar a agenda. “Qual o plano para os próximos anos? Continuar com as privatizações. Petrobras, Banco do Brasil, todo mundo entrando na fila, sendo vendido e isso sendo transformado em dividendos sociais. Eu chego aqui cheio de ideias, planos e sonhos. Agora, é a política que comanda o processo todo. Ela pode travar, ela pode desacelerar, ela pode interromper”, disse o ministro em evento promovido pela International Chamber of Commerce-ICC Brasil.
Segundo afirma o Tesouro no Boletim, "não houve, em 2020, uma redução efetiva do número de empresas controladas diretamente pela União, confirmando o fato de que este é um processo que realmente demanda tempo para sua efetivação, independentemente das vicissitudes de um ano absolutamente atípico".
Ainda na opinião de Gamboa, apesar das promessas, Bolsonaro poderia não estar realmente convencido das privatizações e da ideia de diminuir a participação do Estado na economia. O próprio presidente admitiu, em setembro, que sua formação militar o tornou “estatizante”, mas que passou a apoiar a política de privatizações de Guedes.
“Eu era estatizante, era completamente. Era minha formação militar. Depois vi que não dá certo”, disse Bolsonaro em entrevista à "Jovem Pan".
Ainda para o especialista, a questão ideológica, embora esteja presente nas discussões, tem pouco peso na hora da tomada de decisões. “O político é pragmático. Esse é o ponto, na minha modesta opinião, não tem velha política e nova política. A política é a mesma de sempre, tem a troca de favores”, diz.
Quanto à privatização dos Correios, Ulisses lembra que trata-se de um tema sensível e, mesmo que chegasse a ser aprovada, não seria realizada adequadamente. “No Congresso, o clima é de eleição, e o governo também está em modo de reeleição. Tem demais forças políticas se organizando, alianças, o pessoal está muito mais preocupado com articulação das eleições”, diz.
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