Quando foi encomendado na década de 1870, o edifício de estilo renascentista que abrigaria uma estação de tratamento de água em Buenos Aires foi projetado para destacar o surgimento da Argentina no cenário mundial.
Quando finalmente foi inaugurado, duas décadas depois, o Palacio de Aguas Corrientes já era um símbolo da ambição perdida. Com seus azulejos de terracota e vitrais importados, a companhia de água ilustrava os excessos que tinham destruído a economia argentina e quase colocado abaixo o sistema financeiro internacional.
O episódio que veio a ser conhecido como a crise Barings de 1890 é estudado pelos historiadores econômicos como o maior colapso de dívida soberana daquele século. Para os argentinos, no entanto, as consequências repercutem fora das páginas dos livros didáticos; os mesmos elementos de boom e derrocada se encontram na raiz da crise econômica e política do país até os dias atuais.
Vice-campeã mundial da recessão
Desde 1950, a Argentina passou 33% do tempo em recessão, de acordo com um relatório do Banco Mundial divulgado em maio. Em termos globais, só foi superada pela República Democrática do Congo, que passou por duas grandes guerras, três golpes militares e vários conflitos regionais no mesmo período. Em comparação, o Brasil teve recessão em 12% do tempo.
A perene volatilidade da Argentina está mais uma vez em primeiro plano, já que o presidente Mauricio Macri tenta a reeleição na sequência de uma derrota monetária e de um empréstimo de US$ 56 bilhões do Fundo Monetário Internacional. Com primárias presidenciais marcadas para 11 de agosto, a votação está se tornando uma disputa dramática sobre o futuro econômico do país.
Embora as pesquisas indiquem uma disputa apertada, os investidores se posicionam claramente em apoio a Macri, que poderá implementar as reformas que eles imaginam necessárias para afastar a economia da recessão. A preocupação é de que o principal oponente de Macri, Alberto Fernandez, não se revele o presidente moderado que promete ser, pelo fato de ter como companheira de chapa a ex-presidente populista Cristina Fernández de Kirchner. De sua parte, Alberto Fernandez, 60 anos, critica a política econômica de Macri e diz estar feliz por não ser o "candidato de Wall Street".
Fernandez tem o voto de Julian Diaz. Dono de três restaurantes em Buenos Aires, Diaz, de 37 anos, diz que apoia a chapa "Fernandez-Fernandez" não tanto por convicção política como por necessidade econômica e social.
Os negócios vão mal e Diaz diz que a inflação fez seus preços subirem "exponencialmente": um café com leite custa hoje 80 pesos (US$ 1,80); há um ano, custava 55 pesos. Ele reduziu o número de funcionários e colocou na geladeira os planos de expansão, à espera do resultado eleitoral.
"Não podemos pensar em desenvolver o país com a pobreza e a violência aumentando, com o abismo social aumentando e sem poder de compra do consumidor ", disse Diaz em seu restaurante Los Galgos, a três quadras do palácio de Aguas Corrientes. A crise da Argentina é cíclica, é "insuportável", diz ele. "Tem sempre outra crise chegando."
A turbulência pode ser rastreada até a última década do século XIX. Naquela época, a Argentina lucrava com a agricultura de suas abundantes planícies, os pampas, e uma onda de migrantes europeus corria atrás de oportunidades a serem aproveitadas. Mansões opulentas, avenidas parisienses e praças utópicas estavam surgindo na capital. Quando as obras ainda estavam prestes a começar no Palacio de Aguas Corrientes, já se iniciavam os os planos para o Teatro Colon, até hoje uma das melhores casas de ópera do mundo.
O banco inglês Baring Brothers and Co. atirou-se feliz à corrida e apostou alto na Argentina. Quando a economia desacelerou, em 1889, os argentinos farejaram uma crise e rapidamente trocaram seus pesos por ouro, derrubando a cotação da moeda nacional. Uma seca, um golpe de estado fracassado, o aumento da inflação e as greves afastaram os investidores estrangeiros. No início de 1890, o governo já não conseguia segurar a espiral descendente.
O ponto crítico aconteceu quando a Barings não conseguiu emitir títulos na bolsa de Londres para a Companhia de Abastecimento de Água e Drenagem de Buenos Aires, contratada para construir o Palacio de Aguas Corrientes. Em seguida, o Barings notificou o Banco da Inglaterra que estava à beira da falência devido a seus investimentos na Argentina e pediu socorro financeiro. No ano seguinte, 1891, a economia da Argentina encolheu 11%.
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O Barings "simplesmente emprestou muito dinheiro, eles foram longe demais", avalia Eugene White, professor da Universidade Rutgers e pesquisador do tema. "A festa ficou muito agitada e eles não levaram a taça de ponche para longe."
Muitos dos elementos da crise de Baring – fuga de capital, empréstimo internacional e até estiagem – ecoam também na atual recessão da Argentina. Os problemas econômicos seguem um caminho conhecido: confiando nos dólares da venda de commodities agrícolas, o governo gasta mais do que arrecada e acumula dívidas para financiar as importações. Quando os investidores azedam diante de pedido de mais dinheiro, o dominó cruel acaba desembocando em miséria. Não é de admirar que a Argentina tenha registrado 61 chefes de bancos centrais em 84 anos de existência da instituição.
No entanto, essa natureza cíclica da vida na Argentina significa que alguns eleitores estão dispostos a dar a Macri um pouco mais de tempo. Natalia Perrotta, 32 anos, médica de um hospital público, cortou gastos pessoais e a viagem de férias, mas não culpa o presidente pela situação. "Na Argentina, sempre tivemos altos e baixos na economia", disse ela. "Por isso eu não considero o que está acontecendo agora como novo."
Os sinais de alerta estão novamente piscando em vermelho: o FMI prevê uma retração de 1,3% para 2019, com a inflação encerrando o ano em cerca de 40%, e "riscos negativos significativos " em suas perspectivas, notadamente envolvendo a incerteza política.
Dinheiro guardado lá fora
O resultado é que muitos argentinos têm pouca fé na política e na própria moeda. A prova? Eles têm cerca de US $ 350 bilhões guardados no exterior, mais do que toda a poupança doméstica, segund Miguel Kiguel, diretor da consultoria EconViews e autor de um livro sobre as crises econômicas da Argentina.
"A falta de confiança vem do fato de que a cada poucos anos ocorre uma grande desvalorização da moeda ou disparada da inflação, e a maneira de se proteger é investir em dólares", diz Kiguel, ex-chefe de assessoria do Ministério da Economia na década de 1990.
Quando os governos mudam, as reviravoltas são muitas vezes dramáticas. A Argentina passou de sete presidências no início dos anos 1970 para uma sangrenta ditadura militar de direita que levou o país à guerra com o Reino Unido. Na década de 1990, surgiu um governo desenvolvimentista, sucedido por governos populistas de 2003 a 2015 e, finalmente, a presidência favorável ao mercado de Macri.
O engenheiro civil Macri, de 60 anos, fez do retorno da Argentina ao cenário internacional o centro de sua plataforma de governo. Ele procurou desfazer as medidas de sua antecessora, Cristina Kirchner, que fez intervenção no mercado, adulterou estatísticas oficiais e se recusou a pagar os credores internacionais. Mas ultimamente Macri vem combatendo o populismo com populismo, congelando preços de alimentos, contas de celulares, eletricidade, gás e transporte público. Fernandez, um adepto do populista movimento peronista fundado em 1946 pelo então presidente Juan Perón e sua esposa, Eva, acusa Macri de má gestão e defende gastos sociais mais generosos. O primeiro turno da eleição será em 27 de outubro, com um segundo round no final de novembro, se necessário.
Gerardo della Paolera, 60 anos, historiador econômico e coautor de um livro sobre a Crise Barings, acredita que mais turbulências são inevitáveis, independentemente de quem vença: a Argentina precisará renegociar sua dívida assim que o dinheiro do FMI secar em 2021, diz ele. Como muitos argentinos, Paolera está preparando o espírito de sua família, sabendo como esta história termina. Seus filhos adultos amam a Argentina e não querem ir embora, mas ele não vê um futuro para eles em seu próprio país. "Eu os empurro para imigrar ", revelou.
Diaz, o dono do restaurante, lamenta a oportunidade perdida de seu país. "Sempre que passo pelo Palacio de Aguas Corrientes ou pelo Teatro Colón, vejo símbolos do que a Argentina poderia ter sido", diz, enquanto toma um café. A Argentina tem "muitas coisas maravilhosas, mas ao mesmo tempo é instável e imprevisível. Nunca sabemos o que vai acontecer amanhã".
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