Ouça este conteúdo
O plenário do Senado deve votar nesta terça-feira (3) o projeto de lei que dá autonomia formal ao Banco Central (BC), que busca reduzir as chances de ingerência política na instituição e dar mais credibilidade à condução da política monetária.
A independência do BC é sonho antigo do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente da instituição, Roberto Campos Neto, que tem trabalhado pessoalmente pela aprovação do texto. O projeto, se aprovado, ainda precisará do aval da Câmara dos Deputados e da sanção presidencial para entrar em vigor.
A autonomia formal do Banco Central já foi discutida em outras épocas, mas nunca avançou. O momento em que a ideia ganhou mais visibilidade foi na campanha eleitoral de 2014, quando foi defendida por Marina Silva (então no PSB) e atacada pela presidente Dilma Rousseff (PT), que buscava a reeleição. Uma propaganda da petista afirmava que dar independência ao BC significaria "entregar aos banqueiros um grande poder de decisão sobre sua vida e de sua família", enquanto exibia comida desaparecendo do prato e pessoas com expressões desoladas.
Para Guedes, a aprovação da autonomia será um capítulo decisivo na história brasileira para despolitizar a gestão monetária.
“Isso é um sonho de mais de 30, 40 anos. E a razão é muito simples: despolitizar a moeda. O Banco Central tem como meta criar a estabilidade do poder de compra da moeda nacional, a força da moeda nacional. E nós temos que atacar estabilidade da moeda, que é justamente ter um Banco Central autônomo” disse na semana passada, em audiência virtual no Congresso. “O Banco Central [autônomo] não pode mais ser manipulado pelo ministro da Fazenda, como já aconteceu no passado", completou.
Atualmente, o BC já funciona de maneira autônoma, mas isso não está no papel. Há apenas um acordo informal para que o governo federal não interfira nas decisões na autoridade monetária, pacto que já foi descumprido, por exemplo, durante o mandato de Dilma Rousseff, quando houve pressão política para baixar os juros artificialmente.
A independência formal do Banco Central é tratada por especialistas como um avanço institucional e uma consolidação da estabilidade monetária. O principal objetivo é reduzir ao máximo as chances de ingerência política nas decisões da entidade e aumentar a credibilidade do país entre investidores.
Para isso, o texto prevê, entre outras coisas, mandatos fixos de quatro anos para presidente e diretores do BC. Esses mandatos não serão coincidentes com o do presidente da República. Atualmente, o presidente pode trocar a cúpula do BC quando bem entender. O projeto estabelece somente três situações em que são possíveis as demissões. O Brasil é o único país, entre os que adotam o regime de metas de inflação, em que diretoria do BC não tem mandato fixo.
Com a autonomia formal, o Banco Central também perde o status de ministério, deixa de ser vinculado ao Ministério da Economia e vira uma instituição independente do Executivo.
Projeto de autonomia do Banco Central prevê novas funções
Além da autonomia formal e dos mandatos fixos, o projeto de lei em discussão no Senado prevê uma espécie de “duplo mandato light" para a autoridade monetária. Atualmente, o BC tem como única função assegurar a estabilidade de preços através dos instrumentos de política monetária, cambial e creditícia.
O projeto traz uma inovação nesse sentido. Ele prevê mais duas funções, acessórias: crescimento econômico e fomento ao pleno emprego.
“Sem prejuízo de seu objetivo fundamental [a estabilidade de preços], o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego”, diz o parágrafo único do artigo primeiro do projeto.
Esse é o ponto que tem mais causado divergência entre os senadores. O senador Plínio Valério (PSDB-AM), autor do texto e que se reuniu com Campos Neto na semana passada, disse que governo e Banco Central concordaram com o parágrafo, pois segundo ele não se trata de um duplo mandato de fato, mas apenas de uma missão secundária, já executada indiretamente pela autoridade, sem prejuízo ao objetivo fundamental.
Porém, o texto original do governo, em tramitação na Câmara, não prevê nem mesmo esse duplo mandato “light”. O texto do Senado, se aprovado, será apensado ao do governo durante a tramitação na Câmara. Procurado, o Banco Central afirmou que não comenta projetos em tramitação.
Valério reconheceu que o duplo mandato light tem sido o “tendão de aquiles” para votar o projeto. O parágrafo foi incluído pelo relator da proposta, senador Telmário Mota (Pros-RR), a pedido do senador Eduardo Braga (MDB-AM). Mota era contra inicialmente a inclusão das novas funções, mas foi convencido pelo senador e por técnicos do BC de que não haveria prejuízo à função principal.
“No meu último relatório, destaquei que atribuir mandato duplo abriria espaço para o Banco Central ser afetado pelo ciclo político, sendo potencialmente mais pressionado a estimular a atividade econômica e o emprego no curto prazo, visando benefícios políticos eleitorais, em detrimento de uma inflação mais alta no futuro próximo”, relatou Mota.
“Por outro lado, as novas interações com a participação do senador Eduardo Braga e de representantes do Banco Central permitiram compreender que é possível contemplar na atuação do Banco Central as legítimas preocupações com o pleno emprego, sem dar azo aos riscos cogitados na minha última manifestação”, prosseguiu o relator.
À Gazeta do Povo, Mota afirmou que não fará novas modificações no relatório e que é esse o texto que será levado para votação em plenário. Sobre o resultado da votação, ele diz que não pode opinar, mas afirma que o texto precisa ser votado logo, pois é um assunto que não se pode mais adiar.
O que dizem os especialistas sobre o duplo mandato
O economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central e presidente da consultoria econômica Schwartsman & Associados, não vê problema nesse “duplo mandato light” do projeto do Senado.
“Eu acredito que não é um grande problema, porque o projeto define como objetivo principal do Banco Central a inflação. O artigo não traz números, metas de crescimento e pleno emprego. Desde que não tenha números e passe da forma que está escrito, não vai prejudicar o trabalho o objetivo fundamental, que é a busca da estabilidade de preços”, disse Schwartsman à Gazeta do Povo.
Ele afirma que, ao buscar a estabilidade de preços, tendo como principal instrumento a inflação, o Banco Central realmente já atua informalmente para suavizar as flutuações do nível de atividade econômica. “Ao olhar para inflação, você tenta não impor custos exagerados em termos de produtos para a inflação convergir ao longo do ano para a meta estabelecida pelo CMN [Conselho Monetário Nacional].”
César Augusto Bergo, presidente do Conselho Regional de Economia do DF e professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB), diz que não é função do Banco Central olhar para crescimento econômico e emprego. “Se fosse verdade, não precisava de Ministério da Economia. Banco Central tem que focar no câmbio, no credito e na política monetária”, disse à Gazeta.
Bergo afirma que o projeto obriga quem está cuidando de crescimento e desenvolvimento econômico, ou seja, o Executivo, a sentar junto com o Banco Central, que cuida da manutenção da inflação. O que, na visão do economista, é uma incongruência. “Ter que ter uma segregação de função, quem executa não pode assinar.”
Apesar desse ponto, Bergo vê o projeto como um avanço institucional: “Um Banco Central autônomo, forte, ajuda na melhoria do ambiente de negócios, na previsibilidade, na confiança e na credibilidade”.
Ambos os especialistas consultados pela Gazeta do Povo dizem que, na prática, em termos de risco-país e juros futuros, a aprovação do projeto não deve trazer grandes mudanças. “É um avanço institucional e pode ser a base para construir mais estabilidade monetária. Mas o problema do Brasil é fiscal, e nisso o projeto não mexe em nada”, explica Schwartsman.
Metas de política monetária
O ex-diretor do BC também é favorável à proposta, mas tem reticências quanto ao artigo segundo do projeto, que diz: “As metas de política monetária serão estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, competindo privativamente ao Banco Central do Brasil conduzir a política monetária necessária para cumprimento das metas estabelecidas”.
Para Schwartsman, a redação mais precisa seria “metas de inflação”, pois metas de política monetária podem abrir um leque para que outras metas sejam criadas, o que não é bem-vindo, na sua visão. Atualmente, o CMN determina somente metas de inflação para perseguição da autoridade monetária.