O Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, ainda precisa passar pelo crivo do Parlamento para chegar definitivamente à população. Enquanto a proposta é discutida no Congresso, especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo elogiam a intenção do governo de ampliar o tamanho do benefício, que seria capaz de tirar milhões de famílias da miséria. Por outro lado, eles chamam atenção para duas fragilidades: o desenho do programa ainda não está maduro e a tentativa do governo federal de trabalhar com múltiplas frentes pode acabar tirando o foco do problema principal: o combate à pobreza e à desigualdade.
São menos nove benefícios e auxílios a serem pagos. Na prática, com o Auxílio, o governo torna um pouco mais complexa a estrutura do Bolsa Família e amplia seu escopo de beneficiários.
Os valores a serem pagos não foram especificados, embora o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tenha sinalizado a intenção de elevar em no mínimo 50% o "tíquete médio" pago atualmente pelo Bolsa Família, de R$ 192. Também não se sabe se os limites de renda que definem pobreza e extrema pobreza – que definem quais famílias podem participar – permanecerão os mesmos do Bolsa Família.
Apesar da promessa de Bolsonaro, até o momento não há previsão oficial de aumento do valor do benefício. Ao contrário: segundo o projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2022, que o governo apresentou em 31 de agosto, o Auxílio Brasil tem verba total de R$ 34,7 bilhões, ligeiramente abaixo dos R$ 34,9 bilhões programados para o Bolsa Família em 2021.
Ainda é possível mudar o Orçamento – inclusive depois de aprovado pelo Congresso. E, na visão de alguns interlocutores, o governo deve fazer isso, propondo uma nova saída para aumentar o aporte para o Auxílio Brasil.
O PLOA não indica os valores individuais dos benefícios que serão pagos às famílias, mas informa o orçamento total destinado a cada um deles. Veja a seguir:
Aumento do benefício
"A direção do programa é meritória", avalia Marcelo Neri, diretor do FGV Social, centro de políticas sociais da Fundação Getúlio Vargas. "Aparentemente, não se trata de um desenho experimental. Ao que parece, o governo vai levar essa proposta à frente. E, de algum modo, é um pouco ousada."
Segundo o especialista, é importante aportar mais recursos no combate à pobreza não apenas em razão da situação de fragilidade social e econômica marcada pelos reflexos da pandemia, mas pela perda de valor de benefício já pago a famílias em situação de vulnerabilidade.
O aumento prometido pela presidência, de 50%, portanto, seria na prática uma reposição da perda de valor após anos sem correção – o último reajuste no benefício ocorreu no governo do ex-presidente Michel Temer. Neri afirma que um aumento de R$ 43 bilhões no programa seria suficiente para levar todos os brasileiros para a linha de pobreza como "piso de condição de vida". "Um aumento dessa magnitude já seria suficiente para elevar o programa a um novo pico histórico de valor", afirma ele.
Para além da necessidade de se aumentar o valor já defasado, há pontos que merecem atenção, mas que não costumam ganhar holofotes. "Não se trata apenas de definir valor. Tem uma estrutura por trás disso, de cadastro de pessoas, de agilidade, atualização, operacionalização, busca ativa (um indivíduo muito pobre conseguiu emprego e deveria dar sua vaga para outro), melhoria de serviços na ponta", avalia Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.
O professor também lembra que a proposta não está clara quanto a aspectos de financiamento, já que, para que ela funcione, será preciso dar uma solução para os R$ 89 bilhões de precatórios (dívidas reconhecidas pela Justiça) que a União terá que pagar.
Duas principais medidas têm sido estudadas pelo governo: uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que permita o parcelamento de precatórios, ou uma solução via Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê limitar o pagamento de precatórios à mesma regra de correção usada no teto de gastos. Isto é, a inflação medida pela correção do IPCA acumulada em 12 meses até junho.
Pelo modelo estudado, dos R$ 89 bilhões de dívidas a serem pagos em 2022, seriam quitados apenas R$ 37,8 bilhões. E nos próximos anos, seriam somados à conta os novos e os velhos precatórios. Alguma dessas alternativas poderia aliviar o Orçamento, permitindo ao governo drenar recursos para o programa social.
Muitas frentes, menos foco
O Auxílio Brasil prevê nove benefícios e auxílios, segundo o que foi apresentado pelo governo federal à sociedade. São eles:
- Benefício Primeira Infância: Para famílias com crianças de até 36 meses incompletos de idade, pago por integrante que se enquadre nessa condição.
- Benefício Composição Familiar: Para famílias com gestantes ou pessoas com três a 21 anos de idade, pago por integrante nessa condição.
- Benefício de Superação da Extrema Pobreza: Pago por família, para aquelas que não tiverem superado a linha da extrema pobreza após o pagamento dos dois primeiros benefícios (Primeira Infância e Composição Familiar).
- Auxílio Esporte Escolar: Para estudantes com idade entre 12 anos completos e 17 anos incompletos que se destacarem em competições oficiais do sistema de jogos escolares.
- Bolsa de Iniciação Científica Júnior: Destinado a alunos que se destacarem em competições acadêmicas e científicas vinculadas a temas da educação básica.
- Auxílio Criança Cidadã: Destinado ao acesso de criança, em tempo integral ou parcial, a creches, regulamentadas ou autorizadas, que ofertem educação infantil.
- Auxílio Inclusão Produtiva Rural: Incentivo à "produção, doação e consumo de alimentos saudáveis pelos agricultores familiares para consumo de famílias". Só serão elegíveis ao benefício famílias que moram em municípios que firmarem termo de adesão com o Ministério da Cidadania.
- Auxílio Inclusão Produtiva Urbana: Destinado a cidadãos já beneficiários e que conseguirem vínculo de emprego.
- Benefício Compensatório de Transição: Para compensar as famílias que tiverem redução no valor total recebido em decorrência do fim do Bolsa Família e da nova estrutura de benefícios financeiros prevista pelo Auxílio Brasil.
Introduzir muitas variáveis, no entanto, coloca o governo frente a um dilema: ampliar o escopo e atender mais pessoas e, do outro lado, acabar perdendo o foco do problema principal – o combate à pobreza. É o que aponta Marcelo Neri.
"Isso pode acabar tirando o foco tanto do mais pobre como do caminho das pedras em direção aos pobres", avalia o especialista. "É preciso se utilizar de estruturas que já estão constituídas para conseguir avançar nos programas. O governo tem que criar instância para medir mérito cientifico, mérito esportivo, ou performance escolar, e não consegue. O Brasil é um país grande e diverso, é uma tarefa difícil."
"O BF já articula muitos níveis de governo e áreas. Educação, saúde, inclusão produtiva, assistência, e isso já é bastante complexo. É tudo questão de como se faz a gradação para ter mais ganho do que perdas nesse processo", acrescenta Neri.
Marcos Mendes, do Insper, avalia que a MP apresentada pelo governo se parece mais com uma carta de intenções do que uma proposta concreta. Ele também afirma que uma das dificuldades será de ordem administrativa, uma vez que diferentes ministérios terão de conversar entre si para articular o programa.
"Não há nenhuma determinação de valor na MP apresentada pelo governo, nem é dito como os programas se relacionam entre si", afirma. "Se só colocar pontos de intenção, na hora de regulamentar o desenho pode sair todo torto", alerta.
Ele cita, como exemplo, o programa de inclusão produtiva, em que a família já beneficiária pode ter seu tíquete médio elevado à medida que conseguir emprego formal. "Vai diminuindo a transferência de renda e vai aumentando o auxílio inclusão, aparentemente. E isso vai gerando gradualmente uma saída da família do programa. Mas isso só funcionará bem de acordo com a fórmula, quanto vai pagar, quando vai diminuir de um benefício e aumentar do outro", explica Mendes.
Como consequência, uma medida dessa natureza poderia, na opinião do especialista, virar uma espécie de novo abono salarial. Quanto a isso Mendes lembra: "Não é um programa bem desenhado, pois quem está empregado no setor formal está longe de ser dos mais pobres. O pobre está desempregado, no setor informal", diz.
Um outro ponto da proposta criticado por Mendes é o auxílio Inclusão Produtiva Rural, tido pelo especialista como uma tentativa de reavivar o Fome Zero, da gestão petista. No Auxílio, o governo quer incentivar a "produção, doação e consumo de alimentos saudáveis pelos agricultores familiares para consumo de famílias". Só serão elegíveis ao benefício famílias que moram em municípios que firmarem termo de adesão com o Ministério da Cidadania.
"Aquele programa teve um custo altíssimo, com o armazenamento de alimentos, perda de produtos, transporte de produto, custos administrativos e de transação e, além disso, a agricultura familiar não produziu em volume suficiente para atender a demanda", avalia. A transferência direta de renda é tida por economistas como muito mais barata, em termos administrativos.
Há interlocutores que acreditam que o timing das eleições de 2022 deve facilitar a aprovação da proposta no Parlamento. O temor, por outro lado, é que tipo de proposta deve se concretizar, uma vez que não houve debate suficiente, e como o programa será mantido ao longo dos próximos anos.
"Apesar de terem tidos vários balões de ensaio, não houve realmente debate público sobre o programa. Falamos em Renda Brasil, Renda Cidadã", diz Marcelo Neri.
"Coisa nova pra fins eleitorais pode acabar sendo um tiro no pé", avalia Mendes. "Fazer isso às pressas pode gerar um programa com menor qualidade, além de abrir um hiato sem pagamento dos benefícios por falta de regulamentação."
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